28 de março de 2024
Ligia Cruz

O desafio para ser cidadão


A desonestidade está tão entranhada na cultura brasileira que é difícil combatê-la. Algo simples pode se tornar um tremendo pesadelo quando quem presta serviços acha que não deve lealdade a você e te considera mais um quinhão no bolso.
Minha sexta-feira foi assim, um dia de desassossego e frustração porque eu tive que fazer uma viagem pela cidade para passar por uma consulta muito específica. Fui bufando e maldizendo o fato de não haver um local mais próximo para o que eu precisava. Afinal eu moro em bairro bem central, perto dos melhores hospitais e endereços da capital.
Quem conhece São Paulo sabe que se bandear da Aclimação para a Av. Francisco Morato é cruzar a cidade e passar para o lado de lá do Rio Pinheiros. Bem longe de casa.
Saí com duas horas e meia de antecedência para não ter erro em um trajeto desconhecido. Tracei a logística e optei por ir de metrô a maior parte do trajeto e complementá-lo com uma pequena corrida de táxi. Da estação Vergueiro, linha azul, até a Luz; e de lá seguindo para o terminal Butantã, pela Linha Amarela. Lá eu pegaria um táxi e chegaria com 20 minutos de antecedência.
Mas tem dia que as coisas embolam e de nada adianta a sua precisão cirúrgica quando se depende dos outros. Na conexão na Luz quase fui atropelada por um mar de gente que se golpeava para pegar o trem da CPTM e viajar sentado. Foi como a boiada arrebentando a cerca.
Desembarquei no Butantã e fui perguntando aqui e ali até chegar ao lado certo da rua. Um rapaz me sugeriu atravessar a avenida e pegar o táxi no ponto. Como sou precavida concordei e lá fui eu, certa de estar fazendo tudo certinho.
Me recebeu no carro uma mulher, eu a cumprimentei e disse o meu destino. Ela engatou e foi dar a volta por dois quarteirões para chegar ao ponto em que acessaria o início da Francisco Morato, após esperar em um semáforo – daqueles que só passa uma mosca por vez.
Como estava tudo entulhado, ela me sugeriu um atalho e disse que me deixaria bem em frente ao hospital. Sendo ela da área, concordei em confiança.
Lá fomos nós papeando. Perto do que seria o destino ela me aconselhou a desembarcar perto de uma faixa de pedestre e disse: é aquele prédio com vidros grandes atrás das árvores. Paguei e agradeci.
Cruzei a avenida e fui na direção da portaria com meu protocolo. As recepcionistas disseram que ali não havia consultas, só pronto-socorro. Fiquei desacorçoada e perguntei onde era a entrada correta; aí eu tive a confirmação de que estava no endereço errado. O hospital que eu deveria ir ficava um quilômetro adiante e eu tinha menos de 10 minutos para chegar lá .
Nem vou dizer o que pensei. Como uma motorista que é de um ponto do bairro desembarca uma passageira com dificuldade de locomoção no lugar errado? Não adiantava reclamar eu tinha que acelerar. Atribuí o ocorrido ao desleixo profissional e eu tola caí porque não estava em local conhecido. Quando se pega um táxi é para chegar no horário com conforto.
Voltei para o outro lado da avenida para pegar outro carro. Com sorte eu chegaria em cima da hora. Só que não passava nenhum. Eu ali desesperada com receio de ser penalizada pelo atraso e ter que me submeter a mais um mês e meio de espera e voltar para aquele fim de mundo.
Comecei a descer uma pirambeira relutante para depois ter que empreender uma subida rumo ao endereço final. Nada de táxi. Um lugar ermo, bem estranho.
Quando o relógio já marcava 15 minutos de atraso, olhei para trás e vi um táxi vindo na minha direção. Miragem! E eu com a língua de fora no deserto. O velhinho carequinha e simpático ouviu meu pedido enérgico de seguir para o hospital rápido. Eu repeti duas vezes o endereço e ele sorriu garantindo que conhecia o local. Me aconselhou a ficar tranquila. Resignada assenti.
Ele queria dar a volta para me deixar em frente e eu recusei; preferi atravessar a avenida a esperar aqueles minutos intermináveis em um semáforo desregulado, como são todos na cidade. A corrida foi 6,50 reais; dei 7,00 e permaneci ali esperando o troco. Ele me olhou e disse: vá tranquila! Me senti insultada, não pelos míseros 0,50 centavos, mas pelo meu troco.
Como assim? Porque o brasileiro tem essa postura de deixar para lá os centavos como se fosse vexatório cobrá-los? Me senti muito mal. Ele disse que não tinha com a cara mais cândida do mundo. O velhinho simpático me dando um balão depois de tamanha fervura. Meus olhos cresceram, a crina de lobo perfurou minhas costas e eu estava pronta para uivar. De repente vi os olhos maculados dele e aquele sorrisinho minguado, quase infeliz. Eu disse: o senhor precisa mais do que eu, engula! Desembarquei num pinote e bati a porta da geladeira dele com uma classe incomparável. E me afastei para aquele velho safardana não retrucar.
Vinte minutos de atraso e uma espera de 40 minutos mais, minha senha surgiu no display. Como foi a consulta? A confirmação presencial de todas as informações que eu já tinha dado para o outro médico. Uma sobrancelha subiu e a outra desceu. Excesso de zelo, prefiro crer nisso. Mas desceu quadrado.
Tarde perdida nesse périplo e decidi respirar fundo e voltar o trajeto num só ônibus até o metrô Paraíso, até a próxima estação, a minha. Não preciso dizer que todos os assentos preferenciais estavam ocupados por marmanjos “dormindo”. O que fez o cobrador interceder. O rapazola se fez de bobo e disse: a senhora foi passando reto…
Eu respondi: não sem antes ver um jovem como você, com os dedos cansados de tanto teclar, ocupando meu lugar. Metade do povo riu, a outra metade deve ter vestido a carapuça. Como brasileiro é desonesto! Saí de casa às 15h30 e voltei às 19h45. Uma gastura totalmente desnecessária.

Ligia Maria Cruz

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

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