Dois decretos mostram o viés autoritário de um governo que exclui a sociedade das decisões.
Especialistas em tratamento de viciados não poderão dar sugestões de como tratar de questões como as cracolândias
Foto: Felipe Rau/Estadão
Se fosse só gogó, falação, palavras, imbecilidades ditas a cada momento, a toda hora, todo dia, já seria péssimo para o país. Mas não é só da boca pra fora: o governo Jair Bolsonaro age. Executa, obra, opera – e sempre para o lado do mal, das trevas. Do autoritarismo. A cada ato desse governo, o país fica um pouco pior.
Nos últimos 5 dias, Bolsonaro assinou dois decretos tratando de temas absolutamente diferentes, mas que têm o mesmo objetivo: alijar da estrutura de órgãos governamentais a presença de representantes da sociedade. Tirar fora o Brasil, para que Brasília se sobreponha. Exatamente o oposto do que ele prometeu ao longo da campanha e nas primeiras semanas de governo. Em vez do “Mais Brasil, menos Brasília” da promessa, o governo Jair Bolsonaro concentra o poder em si mesmo – e tira fora quem não é da corriola, do bando.
Não é um movimento isolado. Faz sentido. Todo o discurso de Jair Bolsonaro e do seu séquito mais próximo é assim mesmo: em vez de pluralidade, uma única voz. Em vez de democracia, autoritarismo. Em vez de conversa, de discussão, ordem unida.
***
Um decreto trata da área do audiovisual, de cinema. O outro trata da política sobre drogas. Temas diferentes, o mesmo objetivo.
Na sexta-feira, 19/7, foi publicado decreto no Diário Oficial com mudanças no Conselho Superior de Cinema, a entidade responsável por propor e formular a política nacional da área. O Conselho deixou a alçada do Ministério da Cidadania e foi para a da Casa Civil. Mas a mudança realmente importante foi na sua composição. Antes, havia seis membros da indústria do audiovisual – gente da área, gente que entende do assunto, profissionais da coisa. E três representantes da sociedade como um todo.
O decreto tirou fora três membros da indústria do audiovisual e um da sociedade civil.
Eram nove representantes da área específica em questão e da sociedade como um todo. O Brasil. E sete membros do governo, dos Ministérios. Brasília.
Agora são cinco do Brasil – e sete de Brasília.
***
O decreto que mexe com o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) é ainda mais ousado, ainda mais violento, ainda mais alijador da sociedade, do Brasil, ainda mais concentrador das decisões nas mãos do governo.
Publicado no Diário Oficial na segunda-feira, 22/7, o decreto simplesmente elimina os cargos de entidades da sociedade, e mantém na composição do Conselho apenas os membros do governo!
O Conad foi criado em 2006, com a missão de acompanhar e atualizar as políticas e programas sobre droga. Tinha 28 membros – 12 do governo e 16 de entidades diretamente ligadas à questão, como os conselhos federais de Medicina, Psicologia, Enfermagem e Educação, ou organismos que também tratam do tema, Ordem dos Advogados, Sociedade Brasileira para o Congresso da Ciência.
O decreto tirou fora tudo isso – CFM, OAB, SBPC. Cientista, educador, médico, psicólogo não tem mais direito de dar palpite quanto às políticas sobre drogas.
Agora, só gente do governo apita, palpita, sugere – e decide. Só luminares como Damares, a da Goiaba.
“A mudança no Conad é um ataque à democracia”, disse Paulo Aguiar, do Conselho Federal de Psicologia, um dos representantes da sociedade que foram cortados do órgão. “E também ilustra a aversão ao conhecimento neste governo, ao retirar do conselho de fato especialistas que lidam diretamente com a temática e que têm estudos de longa data sobre o uso de drogas no país.”
E o psiquiatra Leon Garcia, diretor da Secretaria Nacional de Drogas entre 2013 e 2016, afirma: “O Conad é um instrumento para construir uma política de Estado sobre Drogas. Não consigo imaginar essa construção sem debater com psicólogos, assistentes sociais, médicos, cientistas, advogados, jornalistas, etc. Quem tem medo do debate?”
***
A pergunta do psiquiatra, claro, é só retórica. A resposta já está embutida na pergunta. Tem medo do debate quem é autoritário, ditatorial, antidemocrático. Gente como Bolsonaro e sua turma.
No final de fevereiro, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, teve que engolir o sapo de, a mando do chefe, revogar a nomeação de Ilona Szabó para membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
Ilona Szabó é provavelmente um dos brasileiros que mais entende de política criminal e penitenciária: é cientista política, tem mestrado em estudos de conflito e paz pela Universidade de Uppsala (Suécia) e é especialista em redução da violência e política de drogas. Fundadora do Instituto Igarapé, que se dedica a estudar e a elaborar propostas de políticas públicas para a redução da violência, Ilona Szabó atuou na ONG Viva Rio e foi uma das coordenadoras da campanha nacional de desarmamento.
Para que uma profunda conhecedora de Política Criminal e Penitenciária no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária? Bobagem, decidiu Bolsonaro – e o superministro Sérgio Moro engoliu o sapo de ter que desconvidar a convidada.
O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, segundo determinou o decreto desta segunda-feira, passa a ser presidido por dois ministros, o da Justiça, Sérgio Moro, e o da Cidadania, Osmar Terra. Terra, segundo informa O Globo desta terça-feira, 23/7, “vem tomando a dianteira no debate da nova Política Nacional sobre Drogas no governo Bolsonaro, embora a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas esteja sob o guarda-chuva da pasta de Moro”.
Sérgio Moro, desta vez, teve que engolir o sapo de não poder indicar ninguém para o Conad. Não há mais indicados da sociedade – só há gente do governo.
***
E qual é a explicação do governo para esses decretos que excluem a sociedade brasileira dos órgãos que tratam desses temas, tão distantes um do outro, mas ambos importantes demais?
Ah, é para despetizar. Desesquerdizar. Descomunistizar.
“Há décadas a esquerda se infiltrou em nossas instituições e passou a promover sua ideologia travestida de posicionamentos técnicos”, explicou um Twitter da conta do presidente da República, portanto escrito por ele ou por alguém a quem ele delegou falar em seu nome. “O decreto que assinei hoje (…) acaba com o viés ideológico nas discussões.”
Acaba com o viés ideológico, não! Uma ova! Imprime o viés ideológico dele, o viés ideológico de uma direita primitiva, radical, que faz a defesa da anti-ciência, das trevas, da pré-história.
Sempre que Bolsonaro fala de tirar o viés ideológico ele se refere na verdade a substituir um viés ideológico por outro – o dele.
Só não consigo entender se ele age assim porque é mesmo completamente idiota, ignorante, e não entende o significado da expressão “viés ideológico”, ou se é um grande espertalhão que sabe muito bem enganar trouxa.
Usamos cookies em nosso site para oferecer a você a experiência mais relevante, lembrando suas preferências e visitas repetidas. Ao clicar em “Aceitar tudo”, você concorda com o uso de TODOS os cookies. No entanto, você pode visitar "Configurações de cookies" para fornecer um consentimento controlado.
This website uses cookies to improve your experience while you navigate through the website. Out of these, the cookies that are categorized as necessary are stored on your browser as they are essential for the working of basic functionalities of the website. We also use third-party cookies that help us analyze and understand how you use this website. These cookies will be stored in your browser only with your consent. You also have the option to opt-out of these cookies. But opting out of some of these cookies may affect your browsing experience.
Necessary cookies are absolutely essential for the website to function properly. These cookies ensure basic functionalities and security features of the website, anonymously.
Cookie
Duração
Descrição
cookielawinfo-checkbox-analytics
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Analytics".
cookielawinfo-checkbox-functional
11 months
The cookie is set by GDPR cookie consent to record the user consent for the cookies in the category "Functional".
cookielawinfo-checkbox-necessary
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookies is used to store the user consent for the cookies in the category "Necessary".
cookielawinfo-checkbox-others
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Other.
cookielawinfo-checkbox-performance
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Performance".
viewed_cookie_policy
11 months
The cookie is set by the GDPR Cookie Consent plugin and is used to store whether or not user has consented to the use of cookies. It does not store any personal data.
Functional cookies help to perform certain functionalities like sharing the content of the website on social media platforms, collect feedbacks, and other third-party features.
Performance cookies are used to understand and analyze the key performance indexes of the website which helps in delivering a better user experience for the visitors.
Analytical cookies are used to understand how visitors interact with the website. These cookies help provide information on metrics the number of visitors, bounce rate, traffic source, etc.
Advertisement cookies are used to provide visitors with relevant ads and marketing campaigns. These cookies track visitors across websites and collect information to provide customized ads.