16 de abril de 2024
Colunistas Ligia Cruz

Novembro azul

Ele tinha uma vida pela frente. Tirando a cerveja que vez ou outra passava do limite, era saudável. Ativo, madrugador, gostava do tempo livre para fazer o que mais gostava. Passear com seu cachorro, a quem ele chamava de filho. Um vira-latas sem-vergonha que não abanava só o rabo, mas o quadril inteiro. Latia desesperado para ficar do lado do seu dono e receber afagos de todos.

O velho Raul era um espanhol bravo, sincero de doer. Com ele nada de meias palavras. Se algo o incomodava ele dizia sem preâmbulos. Era quieto, observador e gostava de poucas coisas, mas era intenso, viril. Sabia lidar com cada um dos seus três filhos, mais a menina do seu jeito. Não mimava ninguém. Quando alterava o humor, suas palavras cortavam como aço.

Era um homem admirado pelos colegas de trabalho pela perfeição dos seus desenhos. Era brincalhão quando podia ser, mas quieto a maior parte do tempo. Mantinha sua concentração na prancheta, suas réguas, compasso, lápis sempre afiados e demais ferramentas sempre limpas. Era um projetista meticuloso, que sabia desenhar peças enormes, cheias de ângulos e detalhes. Além de tudo mantinha um acervo de projetos que durante décadas cuidou como joias. Que computador que nada. Não existia isso no seu tempo.

No seu silêncio, podia-se ver a melancolia nos seus olhos verdes. Sentimentos do que fora sua vida dura na Espanha, a guerra civil contra Franco, a Segunda Guerra e o desemprego. Era o mais novo entre os seis irmãos. E o primeiro a imigrar por dias melhores. Por isso decidiu sair sozinho de Sevilha, no ano de 1952. O que tinha economizado só dava para para ficar escondido na casa das máquinas do navio. Era assim que muitos faziam. Mas não deu. Recomeçou do zero a juntar dinheiro novamente. Era mecânico de aviação e imaginava poder trabalhar com isso no Brasil.

Um ano depois conseguiu comprar passagem para a América Latina. O Brasil era imenso e conhecido por receber imigrantes de todas as partes do mundo.

Surdo e sem entender uma única palavra tentou de tudo. Não foi aceito na aviação brasileira por ser estrangeiro. Tempos bicudos. Tornou-se mecânico de caminhões até qualificar-se em outra profissão. Nesse meio tempo conheceu Rosa, apaixonou-se e casou-se com ela. Fez curso de desenho técnico à distância e, em 1964, foi admitido na indústria siderúrgica.

Sua vida foi difícil. Órfão de pai aos dois anos de idade, tinha no seu irmão mais velho um substituto. No Brasil não conhecia ninguém. Aos poucos foi construindo sua rede de amigos. Foi um pai exemplar, adorado pelos filhos e respeitado pelos amigos.

A aposentadoria não lhe fez bem. Ele viveu uma espécie de luto durante vários anos. Sentiu-se descartado, mas a indústria estava entrando na era dos computadores e uma mudança radical se avizinhava. Os projetistas de prancheta foram todos substituídos.

Aos 78 anos, o velho Raul definhou subitamente e morreu. Ele escondeu da família que vinha enfrentando problemas na próstata e já não tinha o que fazer. O câncer já havia se disseminado. Em pouco tempo ele partiu. Se vivo, teria 95 anos de lucidez e paixão.

O novembro azul é uma campanha necessária para que não só os homens, mas toda a família cuide de seus velhos. O amor pode simplificar tudo. O preconceito não serve para nada.

Ligia Maria Cruz

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

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