3 de dezembro de 2024
Colunistas Ligia Cruz

De Venceslau a Jair, só mudaram as moscas

Quem conta um conto aumenta um ponto. A frase é antiga e de autoria desconhecida, mas é o retrato do panorama político nacional, neste e em outros tempos. Mentiras e factoides diários têm sido a tática da oposição ao atual governo. Mas nada disso é novidade. Aqueles que perdem o acesso ao dinheiro fácil e sem méritos e ficam afastados das barganhas do poder acabam por formar um exército de descontentes. Aí residem o diabo e seu sócios.
Alguém poderia dizer: “igual às desgraças deste ano não tem!”. Tem sim. Em seus quatro anos de governo, o presidente Venceslau Brás, da República Velha – período político brasileiro que começou com a proclamação e terminou em 1932 – teve que lidar com inimigos de grande envergadura também, não só na política nacional, como internacional e na saúde.
Imagem: Google Imagens – Gazeta do Povo
A pandemia de 1917-1918 chegou ao Brasil, supostamente, através do navio britânico “Demerara”, que desembarcou passageiros contaminados pela “gripe espanhola”. O coronavírus da época, o bisavô do atual, também não perdoou ninguém. Naquele tempo, o presidente da República, já vinha sendo açoitado pelos opositores desde o primeiro dia do seu governo porque integrava um dos grupos que lutava pelo poder e foi a solução encontrada, num esforço de colisão, para aplacar os ânimos entre mineiros e paulistas que disputavam o comando do país.
Esse período ficou conhecido em nossa história como “a República do café com leite”, em alusão às oligarquias da produção do café e do leite, que dominavam a economia à época. Em um esforço conjunto os grupos concordaram em alternar mineiros e paulistas na presidência da República, para acabar com as contendas. Venceslau Brás foi o mineiro da vez, para o quadriênio de 1914-1918. Meteu-se no olho do furacão, sem saber o que iria enfrentar, e o coronavírus foi um aditivo também explorado pelos contras.
Mesmo diante dessa troca pacífica e combinada de mando como pano de fundo, sempre ocorreram ameaças de insatisfeitos, afinal o país era e é muito maior do que São Paulo e Minas Gerais juntos. Como resposta a isso, logo no primeiro ano de governo, em 1915, houve uma tentativa de golpe de estado por parte de militares. O movimento, conhecido como a “Revolta dos sargentos”, foi sufocado, mas outros conflitos sempre pipocaram aqui e ali, como a “guerra do Contestado”, uma disputa armada na fronteira entre o Paraná e Santa Catarina, que fez vítimas antes de o mapa ser modificado.
Já quase nos estertores da I Guerra outro acontecimento sacudiu a República: o Brasil declarou guerra à Alemanha, após navios de bandeira brasileira terem sido torpedeados por um submarino do Império alemão. Mesmo com uma participação mínima no conflito mundial, o fato exigiu esforços de guerra e problemas diplomáticos foram contornados. Combatentes brasileiros foram enviados para patrulhar o norte da costa africana. Era o que podia ser feito naquele momento, durante as batalhas. Bem se vê que Venceslau Brás não teve uma gestão tranquila, apesar de ter iniciado seu governo sob o lema “governo de pacificação dos espíritos”. Um mineiro de bom humor.
No auge da gripe espanhola, 1917-1918, também houve uma ação de aproveitadores de todos os tipos, como hoje. Arapucas foram armadas por todos os cantos para pegar Venceslau no contrapé. A oposição nunca desiste, para o bem e para o mal, muito embora naqueles tempos os meios de comunicação fossem rudimentares e o disse-me-disse corresse à boca pequena. Nada se compara aos bólidos de “notícias falsas” de hoje, que qualham as mídias de inverdades. Os pasquins e publicações de uma folha é que jogavam as tintas nos fatos, então.
Se hoje há inúmeros antibióticos e medicamentos para debelar as infecções mais graves, naquele tempo a penicilina sequer havia sido descoberta. A distribuição de medicamentos e comida e a segregação social eram praticamente as únicas formas de minimizar os óbitos. Óbvio que o quadro seria o mesmo independente do grupo político que estivesse no comando do país. Como hoje. Contudo, na segunda década do século XX, o quadro era outro.
Tudo corria bem no início dos anos 1900, o mundo passava por uma transformação tremenda de costumes, na indústria, nos modos de produção e de convivência social. Até que a gripe espanhola chegou num momento em que as monarquias estavam sendo confrontadas e a Europa ansiava por novas lideranças. Esse foi o caldo que ferveu no pré-guerra.
No final das batalhas e com o continente já destroçado a Europa sofreu outro duro golpe. Ainda nas trincheiras os combatentes começaram a adoecer e morrer transformando aqueles canais abertos na terra em cemitérios de corpos putrefatos. Os sintomas eram parecidos com o da atual pandemia, com o mesmo nível exacerbado de contágio, mas possivelmente sem tantas mutações. Não se sabe. Primeiro as pessoas manifestavam sintomas de gripe, para na sequência apresentarem comprometimento pulmonar e falecer. Na Europa morreram cerca de 40 milhões de vítimas e, no Brasil, em torno de 1.500.
Apesar da mobilização da população civil e da classe médica, em prol do socorro às vítimas, em 1918, o povo agonizava ante à incapacidade dos países de lidar com um mal tão agressivo. A peste sempre foi e será um trauma inimaginável para os europeus. A penicilina não existia para controlar as infecções. Isso aconteceu só nos anos 1940 e por acaso, em tempos da II Guerra.
Hoje, no Brasil, acrescente-se a tudo isso a corrupção, os desvios de verbas públicas, maracutaias na compra de insumos, descaso na gestão dos estados, sabotagem em tubos de oxigênio, gente furando a fila da vacina e tudo mais de ruim que vilões da vida pública podem promover. Mas, diferente de hoje, o presidente Venceslau Brás não foi alijado do controle e combate nacional da pandemia pelo STF da época. Nem sofreu 60 pedidos de impeachment em meio à crise. Só aquele golpe que foi mal arquitetado no início do seu governo.
Hoje tem tentativas de golpes por diversos meios e danem-se as vítimas. Talvez a política de alianças na República Velha fosse melhor representada e os ânimos aplacados pelas lideranças. Sabe-se lá. Político é político em qualquer tempo da história e oportunidade é algo que não se desperdiça.
E o grau de canalhice também. Nada como pegar um fato tenebroso como uma pandemia, distorcer fatos e jogar a culpa nas costas de alguém.
Venceslau apanhou e Jair também. Tanto lá quanto cá, tudo igual.
Os protagonistas dessas maldades humanas são sempre os maus políticos e seus currais eleitorais. São como danos colaterais que nem mesmo um coronavírus, em sua intrincada natureza, é capaz de produzir.
Ligia Maria Cruz

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

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