Dia 2 de novembro, Finados, nunca me foi triste. Sempre festa, porque aniversário de minha amada irmã, Adriana. Tinha, tem, bolo e chuva. De vez em quando, até cemitério, paisagem que venero, desde que, depois da visita, eu possa sair dele.
Este ano, como em 2020, por motivos vários, não estarei ao lado de minha irmã. E, não só por isso, este Finados está, desde já, melancólico.
Hoje/ontem, dia 1º, depois de algumas diluvianas cervejinhas, com o comparsa Fernando Fantini, apreciando as moças lindas da Savassi, voltei para casa e, depois de rodopiar com a solidão, dei de olhos com um lindo texto de meu amigo, George Borten, no Facebook, com o título cruel: “A Morte de Nelson Freire”.
Tom Jobim, mestre e ídolo maior, dizia ao piano que “triste é viver na solidão, na dor cruel de uma paixão…”. Mais triste é saber que muita gente não sabe quem foi Nelson Freire. Muito menos quem ele será para sempre.
Nelson Freire, como cantaria o amigo de Tom, Vinicius de Moraes, “é uma velha canção em meus ouvidos”. Como João Carlos Martins.
Depois de apreciar as linhas de George, com tinto vinho, enviei o texto para meu amigo de fé, irmão, camarada, Décio Freire, cujo sobrenome entrega o final do filme, sem “happy end”, mas com “happy hour”.
E foi num “happy hour”, há milênios, no escritório de Décio, que solucionamos o fácil quebra cabeças. Lá, costumávamos flanar de tudo um muito: das rosas que falam, à Bomba de Hiroshima. Num destes impertinentes diálogos, Décio me confessou: “Nelson? Meu primo!”.
Sob os eflúvios de um whisky aqui e de uma leitoa acolá, supliquei: “Décio, me arruma um autógrafo do Nelson?”.
Missão dada em dezembro de um ano dourado e mal passado, missão cumprida.
Tempos depois, em novo “happy hour”, Décio aproximou-se maroto e me esticou um pedaço de papel. Nele, o autógrafo de Nelson, escrito com os mesmos dedos que encantaram o mundo, desde Boa Esperança; passando pelo Rio de Janeiro e conquistando o planeta.
Neste exato momento, 23h27, Nelson toca, só para mim, Debussy!
Mesmo assim, continuo.
Podem comprovar, Nelson dedilhava o piano, como se acaricia o corpo da mulher amada.
E se Mozart compunha aos cinco anos, Nelson tocava aos três…
Por falar em criança, no texto de George, ele lembra que Nelson, menino, escapou de horripilante acidente, quando o ônibus em que viajava com os pais, do Rio para BH, desabou das alturas abissais do Viaduto das Almas, hoje desativado, por motivos óbvios.
Com outros tantos, pai e mãe de Nelson morreram… Ele? Saiu do barranco e da neblina como um Bruce Willis. Duro de morrer!
Décio atualizou e completou a história do “predestinado” primo. Nelson também driblou a morte quando, dia 1º de junho de 2009, o Airbus A330 da Air France, que ia do mesmo Rio de Janeiro para Paris, caiu no Oceano Atlântico: “Ele sentiu-se indisposto e, com check-in feito, não embarcou… podia tocar muito ainda se não fosse o tal tombo na Barra”.
Que tombo, Décio?
“Nelson Freire morreu na madrugada desta segunda-feira, aos 77 anos, em sua casa no Rio de Janeiro. Segundo amigos, ele foi vítima de complicações de uma queda que sofreu na rua há dois anos”.
Pausa para encher a taça com um soturno noturno de Chopin! Já volto!
Pronto!
Querido Nelson, Deus, como os deuses do Olimpo, não gosta da concorrência dos mortais.
Ele tentou te matar duas vezes e não conseguiu. Mas te deu um ridículo tombo no calçadão da Barra da Tijuca! Um tombo! Na Barra! Se ainda fosse em Munique! E um tombo com requintes de crueldade porque, em vez de quebrar uma perna, quebrou o BRAÇO do pianista.
Na mais que famosa pintura de Michelangelo, na Capela Sistina, no Vaticano, Deus provoca e quase toca seu dedo, no de Adão. Pois eu também quase toquei o dedo de um deus, ao receber teu autógrafo num pedaço de papel.
E depois desta heresia, se Deus quiser me matar, Misericórdia! Que não seja no Viaduto das Almas, nem na Barra da Tijuca. Escolho cair num avião da Air France, mas em sentido contrário, voltando de Paris, please!
PS: Desconfio severamente que as teclas de Nelson foram mais felizes que as minhas. Sorte dele e nossa!
Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.