26 de abril de 2024
Walter Navarro

Ai de ti, Rio de Janeiro


Ai de ti, Rio de Janeiro, porque Rubem Braga já tinha feito o sinal da cruz de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.
Ai de ti, Rio de Janeiro, porque acabou a véspera e teus dias finais chegaram, com um vulcão de água, uma lava de lama.
Ai de ti, Rio de Janeiro, porque a ti chamaram Cidade Maravilhosa, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e você achou que era carnaval, linda por natureza e abençoada por Deus.
O mesmo Deus que colocou seu filho redentor lá no Corcovado, braços abertos sobre a Guanabara, mas muito curtos pra tirar a tampa da banheira, da lagoa, dos bueiros. Muito curtos para resgatar seus irmãos, afogados, eletrocutados, esmagados pela maldade.
Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme, o Arpoador, o Maracanã e até Vila Isabel, de Noel. Mas tu não viste este sinal; estás perdido e cego no meio de tuas mazelas. Sem Leme e timão, quem te governará? Copacabana te engana, Ipanema é só cinema. Foste iníquo perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.
Ondas do céu, ventos intestinais, nuvens cruéis, homens mortais e fatais.
Grandes são teus edifícios de cimento e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão. A começar pela ciclovia Tim Maia. E se a água não te afogar, ainda tem o fogo do CT do Flamengo, o Inferno de Cabral, Pezão e outros garotinhos insaciáveis.
E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.
Ai de ti, Rio de Janeiro, porque brigando com Deus, teus filhos querem te matar. Por que és lindo, forte, impávido colosso.
Ai de ti, Rio de Janeiro, porque o resto do Brasil inveja teus encantos mil e quer te ver no fundo do mar.
Ai de ti, Rio de Janeiro, porque, não conseguindo derreter tuas montanhas, teu Pão de Açúcar, homens maus te machucam, te maltratam.
Ai de ti, Rio de Janeiro, porque se não bastam as águas de março, convocam os dilúvios de fevereiro e agora de abril.
E o Jardim Botânico virou brejo, o mar virou pirão, num sertão de águas e algas mortas.
Os polvos e moluscos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os cavalos marinhos se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu Leblon? Pois na verdade não haverá Leblon e Arpoador algum.
Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão. Ai daqueles que dormem e acordam com balas perdidas e 80 tiros.
Ai daqueles que passam em seus Porches buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação. Tuas garotas serão garoupas de Ipanema e Urca, se estendendo na areia e passando no corpo óleos odoríferos para tostar a tez na frigideira, na frialdade inorgânica da terra e nos abismos dos Incas Venusianos. Teus mancebos fazem de motos e pranchas instrumentos de concupiscência.
Uivai e clamai, tchutchucos e tchutchucas, rebolai-vos na cinza, no funk do Tigrão, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.
Ai de ti, Rio de Janeiro, porque os badejos e os tubarões estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.
E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.
Por que rezais em vossos templos, fariseus da Barra e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Volta pro mar, oferenda. Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?
Antes de te perder eu agravarei tua demência — ai de ti, Rio de Janeiro e do ano inteiro! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti e os canhões de teus próprios Fortes se voltarão contra teu corpo e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.
E tu, Crivella, filho da outra, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.
E no Copacabana Palace os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Rodrigo Maia, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas.
Pois grande foi a tua vaidade, Rio de Janeiro e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Museu Nacional, e não viste o sinal, e já mandei tragar tuas areias, sereias e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão, num vendaval de terra.
A rapina de teus mercadores, prefeitos, governadores; a libação de teus perdidos e a ostentação do Posto 9, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.
Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de celular e cabos de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares, nos coliformes originais de teus mares.
Pinta-te qual mulher pública, púbica e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde a avenida Brasil até Botafogo, Botaágua e Tijuca, porque eis que sobre teus pecados vai a minha fúria destruidora. Canta a tua última canção, Rio de Abril!
E finalmente o Rio será o Rio será alguma cidade submersa. Os escafandristas virão explorar tua casa, teu quarto, tuas coisas, tua alma, desvãos; o eco de antigas palavras, fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos.
PS: E quem sabe assim, bem longe de Belo Horizonte, no fundo mar, na primeira ostra à esquerda, fundos, horário comercial, futuros amantes, quiçá, se amarão sem saber, com o amor que eu um dia, deixei pra você, Serelepe, bandida, querida.

Walter Navarro

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

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