5 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

Coffee break

Enquanto isso, nas profundezas ardentes…

Foto: Hélvio

Era dia de manutenção das fornalhas, quando os demônios desligavam os equipamentos para limpeza, substituição de tridentes corroídos e recolhimento de ossos calcinados. Aproveitando-se desses raros intervalos, os condenados ao fogo eterno gostavam de se reunir em rodinhas de bate-papo, contando novidades, bebendo café ralo requentado e até queimando um fuminho para relaxar. Satã, sempre rigoroso, fazia vista grossa; fingia que não via.

Lampião foi o primeiro a aparecer, com a velha roupa de couro chamuscada, cheia de furos dos tiros que tomou e que fazia questão de usar em público – pura nostalgia. Não demorou até que outros habitantes das trevas se aproximassem, pisando cuidadosamente sobre as brasas.

Colegas da mesma modalidade, chegaram as famosas Klara Mauerova, a tcheca que se alimentava da carne das crianças que matava, e Elizabeth Báthory, a condessa que tomava banho no sangue das vítimas. Em seguida, o grupo dos pedófilos. O dos assassinos de aluguel. A turma dos espancadores de mulheres e crianças. Abortistas profissionais. Tiranos históricos. Motoristas que beberam, mataram e escaparam. Os cruéis com os animais. E o grupo mais discreto, sempre nas sombras, com suas togas negras: o dos juízes que venderam sentenças para narcotraficantes e bandidos execráveis. Completando a roda, farda nazista em trapos, apareceu o velho Goebbels.

— Tudo bem, alemão? – ironizou o cangaceiro.

— Tudo ótimo! Como eu dizia, uma mentira contada mil vezes torna-se verdade. Então, vamos repetindo “tudo ótimo”…

Espocaram gargalhadas soturnas, aterrorizantes.

— Tem notícias lá do alto? – perguntou alguém.

Goebbels, reconhecido mestre da informação e da propaganda política, ergueu a mão descarnada:

— Tempos difíceis para gente como nós…

O silêncio tomou conta do ambiente acalorado. Ao longe, ouviam-se apenas gritos dos recém-chegados às profundezas sendo “gratinados” – termo inventado pelos capetas idosos, só de gozação, quando os novatos encaravam as primeiras chamas.

— Conta para a gente, alemão.

Goebbels suspirou. Coçou o que restava dos cabelos, visivelmente preocupado.

— Bem, nos velhos tempos era muito melhor. A gente fazia de tudo em segredo, tranquilamente, sem testemunhas, sem alarde, na calada da noite, nos porões… Ninguém ficava sabendo, nada de notícia. Aliás, jornal, cinema e rádio eram poucos; só saía o que a gente queria, bastava a censura ou uma grana todo mês… E assim sempre escapávamos de qualquer chateação, lembram-se?

— Sim, sim… – repetiu o coro, desafinado.

— Agora apareceu lá em cima um negócio chamado “internet”. E qualquer trapaça, tortura, assassinato, roubo, perseguição ou corrupção logo se espalha, todo mundo fica sabendo! Divulgação generalizada! Nenhum criminoso tem mais um minuto de paz…

— Ninguém pode mais mentir, despistar, manipular as notícias? – perguntou uma alma penada, indignada.

— Não sei bem explicar – confessou Goebbels, confuso. São aparelhos de tecnologia moderna, não entendo os detalhes…

Desânimo geral na roda de papo. Das caixas de som irrompeu um funk obsceno em altíssimo volume, avisando o final da folga e o retorno de cada um à sua grelha escaldante. Mas Goebbels, fã de discursos inflamados, ainda teve tempo de berrar:

— Em vez de reclamaram e chorarem por aí, lamentando nossa sina, agradeçam! Não se esqueçam do mais importante: a gente era feliz e não sabia!

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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