Um pássaro azul dentro de um peito amargurado
Alcoólatra, escandaloso, pornográfico, Charles Bukowski fazia jus ao título de “dirty old man”, ou “velho sem-vergonha” – epíteto que deu origem a um de seus livros mais conhecidos, o “Notas de um Velho Safado”.
Alguns de minha geração encararam um rito de passagem desafiante: ler pelo menos uma das suas obras, medida que tinha o efeito de uma vacina. Charles Bukowski conseguia inocular em nosso organismo amostras de seu amargor e desencanto; um vírus atenuado para alertar-nos que viver intensamente não era mole. Enfim, experimentar Bukowski, não se abater com o baixo-astral daquelas linhas e seguir em frente criava certa imunidade.
Jean-Paul Sartre, num impulso desmedido, chamou-o de “o maior poeta norte-americano”. Provavelmente, Sartre devia estar embriagado de Pernod na ocasião; esqueceu-se de Melville, Poe, Emerson, Pound, Elizabeth Bishop e Robert Frost, por exemplo. Mas Bukowski foi, sim, muito bom, genial no seu tempo, marcando a ferro quente a geração “on-the-road” dos anos 70.
Solitário, grosseiro e violento, Bukowski escreveu sobre a vida, a morte, o amor, o sexo, as mulheres, os vícios, o dinheiro, a hipocrisia da sociedade. Não perdoou ninguém, nem a si mesmo. Considerando a vida louca que teve, até que durou bastante: morreu aos 73 anos. Irônico, mandou esculpir em sua lápide a frase enigmática: “Não tente”. Mesmo assim – emburrado, a cara feia e marcada por uma antiga doença, cigarro pendurado na boca –, o velho Charles nos deu muito o que pensar.
“Tudo o que era ruim atraía-me: gostava de beber, era preguiçoso, não defendia nenhum deus, nenhuma opinião política, nenhuma ideia, nenhum ideal. Eu estava instalado no vazio, na inexistência, e aceitava isso. Tudo isso fazia de mim uma pessoa desinteressante. Mas eu não queria ser interessante, era muito difícil” – escreveu.
Um dos poemas mais inusitados de Bukowski – “Bluebird” – foi escrito em 1992, dois anos antes de sua morte. Os fãs de seu estilo cáustico e agressivo estranharam. O que estaria acontecendo com o velho rebelde, antissocial, mal-educado? Por acaso antevia o fim da estrada e queria revelar sua verdadeira alma, suave e romântica?
“Há um pássaro azul no meu peito que quer sair/ mas eu sou duro demais com ele/ Eu digo, fica quieto aí, não vou deixar ninguém te ver/ Há um pássaro azul no meu peito que quer sair/ mas eu meto uísque nele e dou um trago no meu cigarro (…) Eu sou esperto demais, só o deixo sair à noite, enquanto todo mundo está dormindo (…) Não o deixei realmente morrer e dormimos juntos/ assim no nosso pacto secreto/ e isso é o bastante pra fazer um homem chorar/ Mas eu não choro, você chora?”
Quem diria, Bukowski! Puxa! Então, você tinha um belo pássaro azul escondido no peito? Isso não soaria um pouco piegas para sua turma de bar, aqueles bêbados sem-vergonha, brigados com o mundo e falando sacanagens o tempo todo? Se soubessem disso, ririam muito de sua cara, dizendo “fucking bird, damn fucking bird!”
Brincadeiras à parte, acho que o pássaro de Bukowski é uma metáfora geral, romântica e definitiva. Todos nós temos uma ave dessas bem oculta, variando talvez no tamanho, na forma, na cor e, sobretudo, no grau de condenação ao cativeiro. Quando e onde deixá-la voar… Aí é que está.
Se Bukowski reprimia seu pássaro azul com álcool e cigarros, há humanos que escravizam os seus nas grades da arrogância, da soberba, da ostentação, da falsidade e outros artifícios letais. O fato é que o velho safado viveu preso numa gaiola imaginária. La dentro existia, sim, um coração romântico, sensível e machucado.
Escritor e colunista de O TEMPO