7 de maio de 2024
Cinema

Sombras de um Crime / Marlowe

De: Neil Jordan, Irlanda-Espanha-França, 2022

Nota: ★★★½

(Disponível na Amazon Prime Video e, 9/2023.)

Marlowe, no Brasil Sombras de um Crime, produção de 2022 caprichadíssima, chocante, espantosa, fascinantemente bem cuidada, me deixou pensando em como o cinema é mágico, como o cinema é capaz de fazer as coisas mais inacreditáveis acontecerem diante de nós. Com perdão (ou sem) do autor da frase original, Marlowe é uma bela prova de que o cinema é a magia 24 quadros por segundo.

O visual é acachapante. A fotografia, toda a direção de arte, a decoração de interiores, os figurinos, é tudo tão absolutamente bem cuidado que a sensação é de que a equipe toda entrou numa máquina de teletransporte e filmou na Los Angeles da época em que se passa a história, 1939.

O filme foi rodado em Barcelona e Dublin, em novembro e dezembro de 2021!

Não teve Estados Unidos na jogada: é uma co-produção Irlanda-Espanha-França, “sob a Convenção Européia de Co-Produções Cinematográficas”, conforme informam, em letrinhas miúdas, os créditos finais.

O diretor, o ator que interpreta o detetive californiano Philip Marlowe e o sujeito que escreveu o romance em que o filme se baseia são todos irlandeses. Neil Jordan, da cidade de Sligo, República da Irlanda, de 1950, e Liam Neeson, de Ballymerna, Irlanda do Norte, de 1952, são velhos conhecidos, gente do primeiro time.

Do escritor, eu jamais tinha ouvido falar. O livro se chama The Black-Eyed Blonde, e tem edição brasileira pela Rocco, com o título literal de A Loura de Olhos Negros, tradução de Geni Hirata; assina o livro Benjamin Black, mas isso aí é apenas um pseudônimo usado pelo escritor William John Banville – de Wexford, classe 1945. Segundo a Wikipedia, “embora tenha sido descrito como ‘o herdeiro de Proust, via Nabokov’, o próprio Banville diz que W. B. Yeats e Henry James são as duas influências reais de seu trabalho”.

O cara parece presunçoso, metidérrimo. Ainda segundo a Wikipedia, “ele considera o seu trabalho como Black como um ofício, enquanto como Banville ele é um artista. Acha que escrever sobre crime é, nas suas próprias palavras, ‘ficção barata’.” Presunçoso pra não dizer babaca, mas vamos em frente.

Philip Marlowe é contratado por uma bela loura

É preciso uma sinopse da trama. Como não tenho o dom da síntese, uso como base a do AllMovie (o site dá ao filme apenas 2 estrelas em 5):

Marlowe (Liam Neeson) é contratado por Clare Cavendish (Diane Kruger), uma elegante herdeira de descendência irlandesa. O trabalho é encontrar seu amante desaparecido, Nico Peterson (François Arnaud), um ator sem muita importância, ou quase nenhuma. Clare é filha de uma atriz famosa e rica, Dorothy Quincannon (Jessica Lange), que vai tentar, ela própria, contratar os serviços de Marlowe.

A partir das investigações sobre o desaparecimento de Nico Peterson, Marlowe vai descobrindo uma teia complexa de crimes – tráfico de drogas, exploração de prostituição – que envolvem figuras da classe alta de Los Angeles, inclusive figurões ligados ao cinema.

É claro que teria que haver ligações com Hollywood.

O cinema é um troço tão mágico que consegue subverter tudo – inclusive a idade do personagem título. É verdade que Raymond Chandler, o escritor que inventou Philip Marlowe, um dos mais famosos detetives da literatura policial, não era homem de explicitar direitinho quando foi que sua criatura nasceu. Em The Big Sleep, livro de 1939, em que a ação se passa em 1936, é dito que Marlowe está com 33 anos, nascido, portanto, em 1903. Em The Long Goodbye, lançado em 1953, e passado 14 depois, Marlowe está com 42 – teria nascido, portanto, em 1911. Em uma carta escrita a D. J. Ibberson em 1951, Chandler afirma que Marlowe estava com 38 anos – seria, assim, de 1913.

Diferentes datas de nascimento – poderia ser 1903, 1911, 1913.

Os livros com as histórias do detetive Philip Marlowe foram publicados entre 1939 e 1953. E o retratam como um homem entre 36 e 40 anos.

Uma maravilhosa homenagem ao filme noir

Pois o cinema é um troço tão mágico, capaz de fazer de tudo, que neste filme irlandês-espanhol-francês inventou-se um Philip Marlowe que em 1939, tinha 70 anos. Teria nascido, então, ali por 1869 – o que foge completamente do personagem criado por Raymond Chandler.

É um sacrilégio tão grande quanto ter colocado Sherlock Holmes participando do esforço de guerra contra o nazismo, nos anos 1930 e 1940, como foi feito em alguns dos 14 filmes produzidos nos Estados Unidos entre 1939 e 1946 com Basil Rathbone como Holmes e Nigel Bruce como o dr. John Watson. Ora, todo mundo sabe que as últimas notícias que se têm do grande detetive inglês são de 1912, por aí.

Mas quer saber? Foi bom retratar Philip Marlowe como um senhor de 70 anos em 1939, por dois motivos básicos. Porque Liam Neeson, esse ator extraordinário, está excelente, maravilhoso como Marlowe idoso. Ele merecia, meu Deus do céu, um papel bom, depois de tanto filme de ação em que se meteu… E, em segundo lugar, porque a história tinha mesmo que se passar na Los Angeles de 1939 – o lugar e o momento exato em que nascia o filme noir, essa coisa maravilhosa, esse gênero cinematográfico tão absolutamente fascinante.

Há cultuadores de todos os gêneros – ainda bem. Até coisas como American Pie e Quem Vai Ficar com Mary? têm cultuadores. Mas não há nada mais cult do que o noir.

E este Marlowe aqui que o irreverente, iconoclasta Neil Jordan resolveu fazer é uma maravilhosa homenagem ao gênero.

Filmes que evocavam crime, corrupção, decadência

Uma maravilhosa e, Nossa Mãe do Céu, extremamente bem cuidada, bem realizada homenagem ao filme noir.

Marlowe tem todas, absolutamente todas as características dos grandes filmes noir dos anos 40. A única diferença é a cor – e, ah, meu, que cores que o diretor de fotografia Xavi Giménez deu ao filme.

Visualmente, o noir é descendente direto do expressionismo alemão, o movimento dos anos 1920 e início dos 1930 que influenciou muitos dos realizadores europeus que fugiram do nazismo a partir de 1933 e se radicaram em Hollywood. Era preto-e-branco, e claro, e em geral sombrio como o clima das histórias que contava. Dava imensa importância às sombras, ao chiarosocuro, aos movimentos da câmara, aos ângulos inusitados.

No conteúdo, tinha tudo a ver com o clima dos romances policiais dos grandes escritores americanos da época – Dashiell Hemmett, ele mesmo um ex-detetive particular, James M. Cain e Cornell Woolrich, além do próprio Raymond Chandler, para citar só os maiores.

“Os filmes evocavam o brutal mundo do crime e da corrupção, num estilo que enfatizava aspectos da decadência urbana”, define o livro … Ismos – Para Entender o Cinema, de Ronald Bergan. “Os protagonistas, com frequência detetives particulares, são cínicos solitários que transitam por becos mal-iluminados, hotéis degradados e bares melancólicos. Corruptos e mercenários, revelam-se anti-heróis durões, exceto quando se trata de mulheres – em geral, femmes fatales tão irresistíveis quanto amorais e ambíguas.”

Hum… Sim, muitos dos personagens são corruptos e mercenários – mas não os detetives. Philip Marlowe não é corrupto nem mercenário, nem Sam Spade, o detetive criado por Dashiell Hammett. De resto, a síntese do livro é muito boa. E continua:

“Um dos recursos favoritos do gênero é a narração em off, em primeira pessoa, especialmente eficaz em Pacto de Sangue (1944), de Billy Wilder, e levada ao extremo subjetivo por Robert Montgomery, diretor e protagonista de A Dama do Lago (1947), em que toda a trama é apresentada através dos olhos do detetive Philip Marlowe. Esse personagem criado por Chandler também aparece interpretado por Dick Powell em Até a Vista, Querida (1944), de Edward Dmytryk, e por Humphrey Bogart em À Beira do Abismo (1946), de Howard Hawks. Bogart, aliás, foi o primeiro astro noir, ao dar vida ao Sam Spade de Dashiell Hammett em Relíquia Macabra (1941), de John Huston, filme que inaugurou o gênero. Na França, o principal cineasta do estilo era Henri-Georges Clouzot, cujos filmes excepcionalmente sombrios traziam observação aguda sobre a fragilidade humana.”

Muitas citações, brincadeiras, inside jokes…

As colocações do livro … Ismos – Para Entender o Cinema – que fala sobre dezenas e dezenas de gêneros, do ilusionismo e da comédia pastelão até o minimalismo asiático e o feminismo – são bem boas. Claro que não cabem muitos detalhes, e acho bom registrar que ao longo dos anos Philip Marlowe foi interpretado, além dos citados Dick Powell, Humphrey Bogart e Robert Montgomery, também por James Garner (Detetive Marlowe em Ação/Marlowe, 1969), Elliott Gould (O Perigoso Adeus/The Long Goodbye, 1973), e Robert Mitchum (O Último dos Valentões/Farewell, My Lovely. 1975, e A Arte de Matar/The Big Sleep, 1978).

Este Marlowe aqui, em que o detetive é interpretado por Liam Neeson, é o 11º filme com o personagem.

A referência que o livro … Ismos faz a Relíquia Macabra/The Maltese Falcon é especialmente importante – e não apenas porque o filme, de 1941, dois anos após a época em que se passa a ação deste Marlowe, é tido como o primeiro filme noir, mas também por pelo menos duas outras características.

A primeira delas: os dois filmes abrem de maneira semelhante.
No grande clássico de John Huston, baseado em obra de Dashiell Hammett, o detetive Sam Spade (o papel de Humphrey Bogart, repito) recebe em seu escritório, em San Francisco, a visita de uma possível nova cliente, uma mulher bela e elegante, que se apresenta como Ruth Wonderly, embora na verdade se chame Brigid O’Shaughnessy (Mary Astor). A mulher quer que Sam Spade investigue o paradeiro de sua irmã, que desapareceu. Um pouco depois, ela admite que na verdade seu desejo é que o detetive descubra os autores de dois assassinatos.

Em Marlowe, o detetive Philip Marlowe recebe em seu escritório, em Los Angeles, a visita de uma possível nova cliente, uma mulher bela e elegante, Clare Cavendish (o papel, repito, de Diane Kruger), que pede para o detetive investigar o paradeiro de seu amante, que desapareceu.

Uma bela mulher que procura a ajuda de um detetive particular, um private eye – isso que abre o clássico de John Huston de 1941 e esta homenagem aos filmes noir dos anos 40 feita por Neil Jordan – é algo que está presente em diversos exemplares do gênero. Basta lembrar de um dos mais belos filmes noir feitos anos após a época áurea do gênero, os anos 40 e 50: em Chinatown (1974), de Roman Polanksi, uma bela mulher procura o detetive particular Jake Gittes (Jack Nicholson), em Los Angeles, pedindo para que ele investigue seu marido, que estaria tendo um caso com outra.

O segundo ponto que liga diretamente Marlowe ao clássico The Maltese Falcon é a presença, no elenco do filme de Neil Jordan, de Danny Huston, filho do grande diretor (e neto de Walter e meio-irmão de Anjelica).

Danny Huston interpreta Floyd Hanson, o gerente do clube para ricos diante do qual morreu um homem atropelado, que foi identificado como sendo Nico Peterson, o amante desaparecido da bela Clare Cavendish. O clube e seu gerente são muito importantes na trama do filme; sob a fachada de local de encontro exclusivo para sócios muito endinheirados, é um antro de prostituição e venda de droga. Danny Huston é um bom ator, e está ótimo no papel desse crápula desse Floyd Hanson – mas é claro que a escolha dele tem a ver com o sobrenome…

Marlowe é um filme que faz citações, brincadeiras, inside jokes – piadas internas, auto-referentes. No final da narrativa (calma, não vou contar o fim da história…), há uma sequência em um estúdio de cinema em que vemos diversos posteres de filmes. Um deles é de um filme que jamais foi feito, chamado The Black Eyed Blonde – o título do livro John Banville usando o pseudônimo de Benjamin Black.

Esse fictício Pacific Studios parece bastante – nota o IMDb – com o RKO Radio Pictures. O RKO realizou dezenas e dezenas de filmes importantes, mas também um monte de produções B, de orçamento limitado, exatamente como o Pacific Studios da história. O IMDb reparou que todos os pôsteres de filmes visíveis nas paredes do escritório da diretoria do Pacific Studios são da RKO – apenas os nomes dos atores foram alterados.

Uma beleza de filme – mas pouca gente gostou

Marlowe foi o primeiro filme da maravilhosa Jessica Lange em seis anos. O último havia sido Wild Oats (2016), uma comédia em que contracenava com Shirley MacLaine e Demi Moore, e aparentemente não foi lançado no Brasil. Entre Wild Oates e este Marlowe, participou de três séries de TV.

Evidentemente, Jessica Lange não é mais aquela jovem de beleza fulgurante que me deixou extasiado no papel de Angelique, o anjo que dava um dos sorrisos mais lindos da História do cinema para Joe Giddeon, o alter ego do diretor Bob Fosse, à espera do momento de conduzi-lo desta para melhor, em All That Jazz, de 1979. Três anos antes, em 1976, aos 27 aninhos (ela é de 1949), ela havia estreado no cinema no papel de Dwan, a bela loura que cativa o gorilão na primeira refilmagem de King Kong, de John Gullermin. Em 1981, reprisou o papel que havia sido de Lana Turner em 1946, em O Destino Bate à Porta, e protagonizou junto com Jack Nicholson algumas cenas de sexo bastante ousadas.

Estava com 73 anos na época do lançamento de Marlowe. Tem 47 títulos na carreira, e ganhou 44 prêmios, inclusive dois Oscars, um de atriz coadjuvante, por Tootsie (1983) e um de atriz principal, por Céu Azul (1995). Teve outras quatro indicações ao prêmio da Academia, por Frances (1983), Minha Terra, Minha Vida (1985), Um Sonho, uma Lenda (1986) e Muito Mais Que um Crime (1990).

Grande, extraordinária Jessica Lange. Está ótima neste Marlowe como a estrela de cinema riquíssima que tem com a filha, a Clare de Diane Kruger, uma relação de eterna disputa.

Marlowe não parece ter agradado nem à crítica nem ao público. Como já foi falado en passant, ganhou apenas 2 estrelas em 5 no belo site AllMovie. No IMDb, tem nota média 5,3 em 10 na votação dos leitores. No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, teve apenas 37% de aprovação do público e ridículos 25% de um total de 107 críticos. O “consenso dos cdríticos”, segundo o site, é este:

“Liam Neeson não é necessariamente uma má escolha para o clássico personagem, mas Marlowe não consegue construir um bom caso nem como mais um capítulo agradável de uma franquia ou um mistério divertido por si só.”

Anotação em setembro de 2023

Sombras de um Crime/Marlowe

De Neil Jordan, Irlanda-Espanha-França, 2022

Com Liam Neeson (Philip Marlowe),

Diane Kruger (Clare Cavendish),

Jessica Lange (Dorothy Quincannon, a mãe de Clare)

e Danny Huston (Floyd Hanson, o gerente do clube), Adewale Akinnuoye-Agbaje (Cedric, o motorista), Alan Cumming (Lou Hendricks, o gângster), François Arnaud (Nico Peterson, o amante de Clare), Ian Hart (Joe Green, o detetive da Polícia amigo de Marlowe), Colm Meaney (Bernie Ohls, da polícia e depois da procuradoria, amigo de Marlowe), Mitchell Mullen (o embaixador), Patrick Muldoon (Richard Cavendish, o marido de Clare), Daniela Melchior (Lynn Peterson, a irmã de Nico), Stella Stocker (Hilda, a secretária de Marlowe), Seána Kerslake (Amanda Toxteth, a atriz de filmes B)

Roteiro William Monahan e Neil Jordan

Baseado livro “The Black-Eyed Blonde”, de John Banville, com o personagem criado por Raymond Chandler

Fotografia Xavi Giménez

Música David Holmes

Montagem Mick Mahon

Casting Daniel Hubbard

Desenho de produção John Beard

Figurinos Betsy Heimann

Produção Colette Aguilar, Victor Hadida, Patrick Hibler, Billy Hines, Philio Kim, Parallel Film Productions, Hills Productions AIE, Davis-Films, H2L Media Group, Nickel City Pictures

Cor, 109 min (1h49)

Fonte: 50 anos de filmes

Sergio Vaz

Jornalista, ex-diretor-executivo do Jornal Estado de São Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

Jornalista, ex-diretor-executivo do Jornal Estado de São Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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