Às vésperas de uma megaepidemia
Sábia escolha, a do presidente Jair Bolsonaro. Na véspera de completar 1 ano do primeiro caso da Covid-19 no Brasil, e no dia em que o número de mortos foi de 1.582, o maior desde o início da pandemia, ele investiu novamente contra o uso de máscaras e zombou das medidas de isolamento social.
Não satisfeito, olhando para uma folha de papel, aproveitou sua live das quintas-feiras no Facebook para falar rapidamente sobre o estudo de “uma universidade alemã” que trata dos efeitos colaterais do uso de máscaras. Não deu o nome da universidade. Nem o nome do estudo. Não citou seus autores. Apenas disse:
“Pessoal, começam a aparecer estudos aqui, não vou entrar em detalhe, né?, sobre o uso de máscaras. Que, num primeiro momento aqui, uma universidade alemã fala que elas são prejudiciais a crianças. […] Então começam a aparecer aqui os efeitos colaterais das máscaras, tá ok?”
Para quem chamou o coronavírus de “gripezinha”, defendeu tratamento precoce inexistente, receitou drogas ineficazes, recomendou que se enfrentasse a doença de peito aberto, previu em dezembro último que a pandemia estava no seu “finalzinho” e desestimulou a vacinação, tá, tá ok.
Esperar o quê dele?
Há quase um ano, quando o Brasil registrava menos de 4 mil infectados e 114 mortos pelo vírus, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, levou a Bolsonaro três cenários possíveis para a pandemia. No melhor, morreriam 30 mil pessoas. No intermediário, de 60 a 80 mil. No pior, se nada fosse feito, 180 mil.
No dia 12 de dezembro, o Brasil ultrapassou a marca de 180 mil mortos e 6,8 milhões de infectados. O país tem menos de 3% da população mundial, mas uma em cada dez pessoas que comprovadamente morreram da Covid no mundo, morreu no Brasil. Tá ok? Desde que continue vivo, você não está nem aí?
Em entrevista ao programa Manhattan Connection, da TV Cultura, em 28 de janeiro, Mandetta disse que o Brasil poderá viver uma megaepidemia dentro de 60 dias. Ontem, era superior a 90% a taxa de ocupação de leitos em 15 dos 26 Estados. Doublé de general e de ministro da Saúde, Eduardo Pazuello tocou horror:
“Estamos enfrentando uma nova etapa da pandemia. Hoje, o vírus mutado nos dá três vezes mais a contaminação. E a velocidade com que isso acontece pode surpreender o gestor em termos de estrutura de apoio. É a realidade”.
Este filme você já viu, e não vale a pena ver de novo: médicos e enfermeiros obrigados a escolher quem morrerá por falta de respiradores; câmaras frigoríficas nas vizinhanças de hospitais; engarrafamento de carros funerários; pessoas mortas em suas casas; covas coletivas sendo abertas às pressas; falta de oxigênio.
Pazuello, há um mês, em rede nacional de rádio e televisão, proclamou que o Brasil tem asseguradas 354 milhões de doses de vacinas e que até julho, 170 milhões de pessoas terão sido vacinadas. Segundo levantamento da VEJA, a média de pessoas vacinadas com a primeira dose caiu na última semana.
Nos últimos sete dias (de 19 a 25 de fevereiro), foram vacinadas em média 104.093 pessoas, menos da metade da taxa verificada no período de 5 a 11 de fevereiro, que foi de 219.517 brasileiros imunizados por dia. Boa parte dos estados, porém, segue vacinando porque usa vacinas reservadas à segunda dose.
Um estudo conduzido por pesquisadores de 16 países apontou que as disputas políticas em torno da pandemia levaram o Brasil a fracassar no combate à emergência sanitária. O projeto “Comparativo das Respostas à Covid” tinha como ponto de partida entender por que o vírus evoluiu diferente nesses países.
O relatório do estudo mostra que as tensões políticas levaram a polêmicas sobre isolamento social e uso de medicamentos que causaram danos extensos no combate à doença. Como se não bastasse, elas agora também prejudicam o planejamento da vacinação. É o triunfo do negacionismo deliberado, concorda?
Jornalista, atualmente colunista de O Globo e do Estadão.