3 de outubro de 2024
Sergio Vaz

O Primeiro Homem / First Man


 
De: Damien Chazelle. EUA, 2018
Nota: ★★★☆
É fascinante, surpreendente, ver como o diretor Damien Chazelle e o ator Ryan Gosling ousaram deixar de lado aquele mandamento segundo o qual não se mexe em time que está ganhando.
(Tive o impulso de escrever ”mandaram para o espaço aquele mandamento”, mas seria um horroroso trocadalho do carilho.)
Juntos (mais a gracinha da Emma Stone), os jovens Chazelle e Gosling haviam feito La La Land (2016), aquele tremendo sucesso de público e crítica, 239 prêmios, inclusive 6 Oscars, e US$ 446 milhões nas bilheterias. Dois anos depois, em 2018, em vez de um novo musical, um novo romance, Chazelle e Gosling lançaram este O Primeiro Homem, um drama sério, duro, baseado em fatos reais.
Depois de ver O Primeiro Homem, me ocorreu que a humanidade anda acostumada demais com os milagres da ciência e da tecnologia. As pessoas dão de barato que haja internet, Wikipedia, iPhone, Google, telemedicina, operação feita com a ajuda de robôs. Um resumo de todo o conhecimento humano num aparelhinho do tamanho de um maço de cigarro – embora seja preciso dar um google para saber o que era maço de cigarro.
As pessoas dão de barato. Take for granted. (Diacho: nunca tinha me ocorrido uma tradução tão perfeita para take for granted. Não há, no português mais sisudo, menos coloquial, expressão tão perfeita para traduzir take for granted. Pressupor, supor, contar com, dar como certo, achar normal, aceitar sem discutir, não dar valor, não dar o devido valor – nada disso é tão redondo quando dar de barato.)
Que restará a sonhar / para o ano três mil / ao ano dois mil?, perguntava Millor no poema escrito ali por 1960 e bolinha.
Algum tempo depois, Paul Simon fez um poema apaixonante sobre estes nossos “dias de milagre e maravilhas”:
These are the days of miracle and wonder
This is the long-distance call
The way the camera follows us in slo-mo
The way we look to us all
The way we look to a distant constellation
That’s dying in the corner of the sky
These are the days of miracle and wonder
Estes são os dias de milagres e maravilhas, as chamadas de longa distância, o jeito com que a lente nos segue em câmera lenta, o jeito com que olhamos para todos nós, o jeito com que observamos uma constelação distante que está morrendo no canto do céu.
E isso Paul Simon escreveu em 1987. Já eram dias de milagres e maravilhas, e sequer havia internet na casa ou no bolso de cada um de nós.
O Primeiro Homem é um belo filme por diversos motivos. Mas, em especial, creio que é um filme que tem grande importância por nos fazer lembrar que estamos dando de barato coisas que deveríamos entender e respeitar, a cada momento, como milagres, maravilhas.

Há pouquíssimos filmes sobre a corrida espacial

A gente se acostumou a dar de barato a corrida espacial, a conquista do espaço.
Claro, há até hoje os que acham que a Terra é plana, que o Sol e o universo giram em torno deste nosso planetinha mixuruca, que não passa de um pequeníssimo ponto, um ponto azul claro, “a pale blue dot”, como definiu o astrônomo Carl Sagan. Há esses aí, sim – mas a imensa maioria que já ouviu falar da conquista do espaço simplesmente dá de barato que o homem foi capaz de ir à Lua, andar na superfície da Lua, dar lá uns pulinhos sem fazer esforço algum, por causa da gravidade muito menor que a nossa, recolher um pouco de pó lunar, entrar de novo num modulozinho, e voltar para casa.
A gente dá de barato algo que é um dos maiores milagres, das maiores maravilhas que esse animal bípede implume já fez, ao longo dos poucos mil anos em que perambula pela casca do planeta.
Ter atravessado oceanos, ter “em perigos e guerras esforçados / mais do que prometia a força humana, por mares nunca dantes navegados, foi uma façanha e tanto, uma façanha fenomenal, fantástica. Ridley Scott soube perfeitamente mostrar a grandeza das navegações do século XV em seu belo 1492: A Conquista do Paraíso, lançado em 1992, exatos 500 anos depois da proeza de Cristóvão Colombo – e de fato ele mostrou o descobrimento da América como algo colossal, gigantesco, ciclópico como a chegada do homem à Lua.
Foram necessários quase exatos 50 anos – 49, precisamente – para que o cinema mostrasse, em um longa de ficção, com atores, os primeiros passos do homem na Lua.
E aí me peguei perguntando quantos filmes foram feitos sobre a conquista do espaço. Filmes com atores, não documentários, relatando histórias reais. Mary deu um google, achou, em um belo site, uma relação de 12 filmes – mas na maior parte eles são histórias de ficção, não baseados em fatos reais.
Os que existiam, antes dessa nova aventura de Damien Chazelle e Ryan Gosling, são:
Os Eleitos – Onde o Futuro Começa/The Right Stuff (1983), de Philip Kaufman, baseado no romance-verdade de Tom Wolfe, sobre os pioneiros e os sete primeiros astronautas do Projeto Mercury;
Apollo 13: Do Desastre ao Triunfo/Apollo 13 (1995), de Ron Howard, sobre a série de problemas que impediu a nave de chegar à Lua, e os esforços para consertar tudo e trazer de volta à Terra os três astronautas;
Estrelas Além do Tempo/Hidden Figures (2016), de Theodore Melfi, sobre três mulheres negras que tiveram participação ativa nos trabalhos da Nasa, a agência espacial do governo americano, ao longo dos anos 60, na preparação para o envio de naves tripuladas ao espaço.
E é só.
Três filmes, três belos filmes, importantes. Agora, com O Primeiro Homem, quatro. Ao longo de um período de 35 anos, a partir de 1983, o ano de The Right Stuff. Ao longo de 50 anos, de 1989, quando Neil Armstrong pisou na Lua, até hoje.
Nestes últimos 50 anos, quantos filmes e séries de TV terão sido feitos sobre serial killers? 1.000? 2.000?
Sobre o milagre, a maravilha que é levar um verme a passear na Lua cheia, para usar a imagem da canção “Flores astrais”, foram feitos quatro filmes.

O filme quer mostrar também o Armstrong na vida pessoal

La La Land tem roteiro original de Damien Chazelle – a história, a trama é criação dele. Já neste seu filme seguinte, Chazelle se concentrou na direção. O roteiro é assinado por Josh Singer – garotão como o diretor, mas já com dois filmaços na filmografia como roteirista, Spotlight: Segredos Revelados (2015) e The Post: A Guerra Secreta (2017). Fascinantemente, dois filmes baseado em fatos reais, como O Primeiro Homem.
(Sim, garotões, ou quase isso. Chazelle é de 1985 – diacho, 10 anos mais novo que minha filha. Estava portanto com 31 anos quando lançou La La Land e 33 quando lançou este O Primeiro Homem. O roteirista John Singer é um pouco mais velho, é de 1972.)
O roteiro se baseou no livro de James R. Hansen, First Man: The Life of Neil A. Armstrong, biografia autorizada do astronauta publicada em em 2005. A biografia pega tudo, mas o roteiro se concentra num período de oito anos na vida de Neil Armstrong: a partir de 1961, quando ele era piloto de testes de aeronaves militares na lendária Base Aérea de Edwards, até pouco depois de sua chegada à Lua, em junho de 1969.
Há uma grande preocupação do roteirista Josh Singer e do diretor Damien Chazelle de mostrar não apenas o astronauta, o engenheiro-piloto, mas também o ser humano. Notei que há essa preocupação ao longo de todos os 141 minutos do filme, de dar tanta importância à vida pessoal de Neil Armstrong quanto a seu trabalho na Nasa.
Não deve ter sido uma tarefa nada fácil: o Neil Armstrong pintado pelo trabalho do roteirista, do diretor e do próprio Ryan Gosling é um homem voltado basicamente para o seu trabalho. É um workaholic, um perfeccionista, um obstinado, um sujeito inteligente, esperto, estudioso, firme, com uma gigantesca força de vontade, uma imensa capacidade de perseverança e uma resistência física descomunal.

Uma reconstituição cuidadosa, bem feitíssima

A grande paixão da vida de Armstrong, segundo mostra o filme, foi a filhinha Karen (interpretada por Lucy Stafford), que morreu de câncer antes de chegar aos 3 anos de idade. A lembrança de Karen o perseguiu por toda a década – e, sempre de acordo com o que mostra o filme, ajudou a torná-lo uma pessoa ainda mais fechada em si mesma, incapaz de falar de seus sentimentos, suas emoções, até como os amigos mais chegados. Até mesmo com Janet Elizabeth Shearon, com que se casou em 1956, aos 26 anos de idade, e lhe deu Karen e os garotos Eric e Marc. Neil e Janet viveram juntos por 34 anos, até se separarem em 1990.
Janet é interpretada pela inglesa Claire Foy, a ótima atriz que encarnou a jovem Rainha Elizabeth II nas duas primeiras temporadas da extraordinária série The Crown. A atriz criou uma Janet de personalidade forte, apaixonada pelo marido, solidária com ele o tempo todo, mas incapaz de conseguir romper a couraça que ele pareceu criar em torno de si para se proteger do sofrimento, da dureza da vida.
Há uma bela sequência da vida familiar quando o filme já vai se aproximando do fim. Acontece na véspera de Neil se internar na base da Flórida onde embarcaria na Apollo XI rumo à Lua. Neil está com a cara fechada de costume, sem querer papo algum. Janet o enfrenta, diz que ele precisa conversar com seus filhos antes de partir, já que poderá nunca mais voltar para casa. Neil tenta como bagre ensaboado escapar, mas Janet insiste, cerra a guarda – e o sujeito se vê, enfim, obrigado a conversar com os filhos. E admitir para eles que a missão pode não dar certo, e ele pode não voltar.
É de fato uma bela sequência.
O que mais acaba ocupando a narrativa – apesar do esforço de roteirista e diretor para dar grande importância à vida da pessoa – é de fato o trabalho do astronauta, sua dedicação, a preparação para as missões.
É fundamental registrar: o jovem realizador Damien Chazelle dá um show de competência para reconstituir o treinamento, a preparação dos astronautas. É uma produção cuidada, caprichada, e seguramente foram contratados os melhores nomes para cuidar da exatidão, do realismo da reprodução dos trabalhos na sede da Nasa. É uma reconstituição impressionante. Ron Howard, o diretor e produtor extremamente cuidadoso que fez Apollo 13, ele mesmo um garoto prodígio da indústria, tendo começado cedíssimo a carreira, seguramente deve ter aplaudido o feito do rapaz Chazelle.

CLAIRE FOY as Janet Armstrong in “First Man,” directed by Oscar®-winning filmmaker Damien Chazelle (“La La Land”).

Uma dura convivência com a ameaça da morte

O Primeiro Homem realça bastante – como Philip Kaufman já havia feito em Os Eleitos – as dificuldades, os problemas, os fracassos. É uma beleza de se ver isso. Muitíssimo longe do que seria uma versão oficial, um exercício do realismo socialista, caso a União Soviética tivesse feito um filme reconstituindo suas realizações na corrida espacial – aliás brilhantes –, o filme americano vai fundo nas falhas.
Mary e eu não nos lembrávamos, por exemplo, do fracasso da missão da Gemini VIII, em março de 1966. Foi a primeira vez em que astronautas americanos conseguiram realizar uma acoplagem em órbita de duas naves espaciais – Neil Armstrong era um dos três. Após a acoplagem, no entanto, um defeito surgiu, e a vida dos astronautas ficou em sério risco.
O episódio é cuidadosamente reconstituído no filme.
Também não nos lembrávamos de outro fracasso, esse ainda mais grave: o incêndio que aconteceu na plataforma de lançamento em Cabo Canaveral, em 1967, durante os testes na cabine de comando da Apollo 1. O filme mostra o episódio apavorante, em que morreram três astronautas, todos amigos, próximos de Neil: Ed White, Gus Grisson e Roger Chaffee.
(Eles são interpretados, respectivamente, por Jason Clarke, Shea Whigham e Cory Michael Smith.)
O Primeiro Homem de fato realça bastante isso, como Os Eleitos já havia feito: os pilotos de teste, os primeiros astronautas, eles corriam risco. Volta e meia morria um, depois outro, depois outro.
As mulheres daqueles homens conviviam com a morte. Cada uma vivia sempre sob o temor de que o homem que comunicava as mortes fosse bater à porta dela.

Era um homem discreto. Deu poucas entrevistas

Diferentemente de La La Land, que teve 14 indicações ao Oscar e levou 6 estatuetas, First Man foi indicado apenas a 4 categorias, todas técnicas, não entre as mais vistosas: efeitos visuais, montagem de som, mixagem de som e desenho de produção.
Ao Globo de Ouro, o filme teve duas indicações, nas categorias de trilha sonora e atriz coadjuvante para Claire Foy. Ela não levou, mas o compositor Justin Hurwitz, sim. E eis aí um dos pontos altos do filme sobre o qual eu ainda não havia falado. A trilha sonora é excelente, me deixou muito impressionado.
Um detalhinho bobo: fiquei com a sensação (do nada, com base em nada – apenas uma sensação) de que Ryan Gosling é mais novo do que Neil Armstrong era, em 1969, quando pisou na Lula. Fui checar: de 1930, Armstrong estava com 39 anos. Gosling, de 1980, estava com 38. Ponto para o diretor Chazelle, ponto para o filme, zero para mim.
Um detalhe importante: nos letreiros finais, há agradecimentos dos realizadores tanto a Janet, a primeira mulher de Neil Armstrong, quanto a Mark e Rick, os dois filhos dele. Segundo o IMDb, os dois filhos avalizaram totalmente o filme, que fez, segundo eles, um retrato acuradíssimo de seu pai.
Neil Armstrong morreu em 2012 – sete anos, portanto, após a publicação da sua biografia e seis antes antes do lançamento do filme baseado nela.
Diz a Wikipedia – esse milagre que a gente dá de barato – que Armstrong manteve grande discrição no final de sua vida. Ele recusava a maioria dos pedidos de entrevistas e realizava pouquíssimas aparições públicas.
Conta também que ele foi procurado pelos dois grandes partidos, o Democrata e o Republicano, mas, ao contrário de John Glenn, por exemplo, que se filiou ao Partido Democrata e foi senador por seu Estado, Ohio, não quis saber de entrar na vida política. De suas crenças políticas, sabe-se que era contrário a os Estados Unidos da América se arvorarem em ser a polícia do mundo.
Gostaria muito que o cinema fizesse mais filmes sobre histórias reais, essas histórias tão ricas, tão fascinantes, tão importantes, e menos filmes sobre serial killers. Já que citei tanta gente neste texto, de Camões a Paul Simon, cito Hal David, o parceiro de Burt Bacharach, em “What the world needs now”: Lord, we don’t need another mountain, / There are mountains and hillsides enough to climb / There are oceans and rivers enough to cross, / Enough to last till the end of time.
Acho mesmo… Olha, acho mesmo que, além de amor, o mundo anda precisando que a gente deixe de dar tudo de barato, e reconheça um pouco o esforço todo que foi feito antes de nós para transformar a vida em algo melhor do que era no tempo das cavernas.
O duro é que, ao longo do processo, ferramos o planeta. E não há planeta B.

Anotação em fevereiro de 2019

O Primeiro Homem/First Man
De Damien Chazelle. EUA, 2018
Com Ryan Gosling (Neil Armstrong)
e Claire Foy (Janet Armstrong), Jason Clarke (Ed White), Kyle Chandler (Deke Slayton), Corey Stoll (Buzz Aldrin), Patrick Fugit (Elliot See), Christopher Abbott (Dave Scott), Ciarán Hinds (Bob Gilruth), Olivia Hamilton (Pat White), Pablo Schreiber (James Lovell), Shea Whigham (Gus Grissom), Lukas Haas (Mike Collins), Ethan Embry (Pete Conrad), Brian d’Arcy James (Joe Walker), Cory Michael Smith (Roger Chaffee), Kris Swanberg (Marilyn See), Gavin Warren (Rick Armstrong jovem), Luke Winters (Rick Armstrong mais velho), Connor Blodgett (Mark Armstrong), Lucy Stafford (Karen Armstrong), John David Whalen (John Glenn), Matthew Glave (Chuck Yeager)
Roteiro Josh Singer
Baseado no livro First Man: The Life of Neil A. Armstrong, de James R. Hansen
Fotografia Linus Sandgren
Música Justin Hurwitz
Montagem Tom Cross
Casting Francine Maisler
Produção Universal Pictures, DreamWorks,
Perfect World Pictures, Temple Hill Entertainment.
Cor, 141 min (2h21)

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