10 de dezembro de 2024
Sergio Vaz

Juventudes Roubadas / Testament of Youth

De: James Kent, Inglaterra-Dinamarca, 2014
Nota: ★★★☆
O começo do filme é espetacular, um brilho, uma maestria. A primeira imagem que vemos é o rosto de uma jovem e bela mulher, em close-up, ocupando a tela inteira – Alicia Vikander, essa atriz fantástica, que já surgiu com o brilho de uma supernova. A câmara se distancia um pouco do rosto dela, e vemos que ela está na rua, no meio de uma multidão em festa.
A multidão está em festa – mas a bela jovem tem uma expressão de profundo cansaço. De esgotamento absoluto.
As pessoas riem, se abraçam, se beijam. A moça vai caminhando no meio da multidão, e a câmara a focaliza enquanto ela avança devagar. Não há plano aberto, amplo: a câmara pega bem de perto a moça de expressão de exaustão absoluta.
Vemos garrafas abertas nas mãos das pessoas. Bandeiras britânicas, a Union Jack. As pessoas estão exultantes – e só aquela moça rema contra a corrente. É a única pessoa que não está feliz, comemorando.
Um letreiro avisa: “Dia do Armistício, novembro de 1918”. Terminava a Primeira Guerra Mundial, a Grande Guerra, a guerra que, dizia-se, era para acabar com todas as guerras.
Mas a Grande Guerra terminava tarde demais para Vera Brittain.
O espectador já sabe o nome dela. Como é o costume hoje em dia, o filme não tem créditos iniciais: aparecem apenas os nomes das empresas produtoras, e, depois, em letras imensas, o título original, Testament of Youth – e, abaixo das três palavras, como se fosse um subtítulo, “Baseado nas memórias de Vera Brittain”.
Vera anda mais um pouco no meio da multidão em festa, até que consegue escapar dela, de seu barulho alegre, refugiando-se em uma igreja.
Para diante de um grande quadro, uma paisagem em que há um lago.
Surgem imagens de uma jovem sob a água. A jovem, que havia mergulhado, sobe à tona. Está num belo lago no meio de um local especialmente agradável do campo inglês.

A jovem não queria um piano, queria estudar

É 1914, quatro anos antes. O ano em que a guerra iria começar. Vera Brittain se banhava no lago perto da propriedade rural dos pais. Na margem, à espera dela, estavam seu irmão Edward (o papel de Taron Egerton) e um amigo e colega dele, Victor Richardson (Colin Morgan).
Victor gostaria de conquistar o coração da irmã do amigo. Edward gostaria que a irmã se afeiçoasse pelo amigo.
Quando os três voltam para casa, os pais esperavam Vera com um presente fantástico: um piano.
(O casal Brittain, os pais de Vera e Edward, são interpretados por Dominic West e Emily Watson.)
A reação de Vera não poderia ser mais absolutamente supreendente. Em vez de chorar de alegria, agradecer imensamente, ela se insurge contra o pai. Acusa-o de ter desperdiçado o dinheiro que ela deseja gastar indo estudar em Oxford.
A casa dos Brittain está assim, em meio a um momento de imensa tensão, quando chega um outro grande amigo de Edward e Victor – Roland Leighton (o papel de Kit Harington).
Nos dias seguintes, o momento de raiva já sendo deixado para trás, Vera se perceberá encantada por Roland.

Antes da guerra, uma vida quase perfeita

Os primeiros 20, talvez 30 minutos deste Testament of Youth, após aquela abertura nas ruas de uma Londres em festa pelo fim da guerra, descrevem um ambiente lindo, plácido, quase idílico. Quase como se fosse o início de um romance de Jane Austen. Vera é uma moça determinada, quer estudar, quer ser independente – definitivamente, não aceita uma vida semelhante à de uma heroína de Jane Austen.
As dificuldades não são grandes. Embora severo, rígido, certamente conservador, o pai consente em que a filha faça os exames preparatórios em Oxford. Vera se choca de cara com uma mestra severa, Miss Lorimer (interpretada por Miranda Richardson). Mas rapidamente Miss Lorimer vai se mostrar encantada com a seriedade da moça, com sua determinação, sua paixão pelo estudo. Vera é admitida em um dos colleges de Oxford – e, embora sob o olhar sempre atento de sua tia Belle (Joanna Scanlan), ela e Roland começam a namorar.
Então, quando estamos aí com uns 25, 30 minutos de filme, e tudo parece quase absolutamente perfeito na vida de Vera, a guerra começa.
O irmão Edward, o amigo Victor, o namorado Roland – todos se alistam.
Embora estivesse apenas iniciando aquilo que mais queria, uma vida de estudos em Oxford, Vera se sente compelida a abandonar tudo e a se alistar como enfermeira.
E a partir daí é o horror.
Testament of Youth tem poucas cenas de batalhas – mas tem muitas, muitas, muitas sequências apavorantes em hospitais, nos mais diferentes tipos de hospitais, inclusive os de canpanha, na França, bem perto do front.
O diretor James Kent não faz economia alguma de cenas horrendas, horrorosas, dentro dos hospitais que atendem aos feridos de guerra.
Bem ao contrário.
Filmes da mesma safra (este aqui é uma co-produção Inglaterra-Dinamarca de 2014) mostraram sem dó nem piedade o horror das cenas de batalha – grandes filmes como Dunkirk (2017), Até o Último Homem/Hacksaw Ridge (2016). Pois este Testament of Youth não fica atrás deles na forma dura, crua, violenta, apavorante, com que retrata o horror dos hospitais na guerra.

Vera Brittain e seu livro têm grande importância

Nunca tinha ouvido falar em Vera Brittain – e a falha é toda minha. Vera Mary Brittain, nascida em 1896, morta em 1970, foi, como diz a Encyclopaedia Britannica, “uma escritora e pacifista cujo livro Testament of Youth (1933) foi representativo da geração britânica apanhada pela Primeira Guerra Mundial. Ele descreve suas experiências como enfermeira em hospitais do exército. Ela também escreveu diversos romances e livros de não-ficção, inclusive Lady Into Woman: A History of Women from Victoria to Elizabeth II (1953).”
Ao final do filme, nos letreiros que resumem fatos da vida da protagonista da história após aqueles mostrados na narrativa, é dito o seguinte sobre o livro de memórias de Vera Brittain:
“O livro se tornou um best-seller instantaneamente, e foi considerado a voz de uma geração. (…) Testament of Youth continua sendo editado, e é aclamado como uma das mais poderosas memórias de tempos de guerra que já foram escritos.”
Depois de ver o filme, e ler um pouquinho sobre Vera Brittain, fiquei na verdade surpreso com o fato de não terem filmado antes o seu livro autobiográfico.
Houve uma minissérie de 5 episódios, em 1979, produzida pela BBC, com Cheryl Campbell no papel de Vera. Mas só.
Esta produção de 2014 foi o primeiro filme baseado no livro Testament of Youth. Exatos 100 anos após o início da Primeira Guerra.

Um filme propositadamente old-fashioned

Os produtores fizeram uma escolha acertadíssima para o papel de Vera Brittain. Queriam Saoirse Ronan, aquela atriz fantástica, uma usina de talento. Mas a moça acabou abandonando o projeto, por causa de outros compromissos já assumidos, segundo diz o IMDb.
Rei morto, rei posto – e os produtores acertaram em cheio novamente ao escolher essa moça Alicia Vikander.
Sim, é sueca. Nasceu em Gotemburgo, em 1988, filha de uma atriz e um psiquiatra – mas e daí? É bela, é talentosa demais, e fala inglês como os ingleses. Sua interpretação é extraordinária.
Este é apenas o terceiro filme que vejo com Alicia Vikander, depois de O Amante da Rainha (2012) e A Garota Dinamarquesa (2015), mas já sou fã dela desde criancinha. Quase tanto quanto de Saoirse Ronan.
A moça fez 30 anos em 2018; tem quase 40 títulos no currículo, e já ganhou 52 prêmios, inclusive o Oscar de atriz coadjuvante por A Garota Dinamarquesa.
Greta Garbo, Ingrid Bergman, Lina Olin – e agora Alicia Viklander. Hollywood, ou o cinema de língua inglesa de maneira geral, importa da Suécia ouro em pó.
No New York Times, o crítico Stephen Holden escreveu o seguinte: “Testament of Youth, a majestosa adaptação das memórias da escritora britânica Vera Brittain sobre a Primeira Guerra Mundial, evoca a marcha da História com um equilíbrio e um comedimento muito pouco comum entre filmes com tão grandes ambições. A maior parte de filmes parecidos costuma ter um tom bombástico e sentimental. Este aqui, com um roteiro da autoria de Juliette Towhide (de Calendar Girls), é propositadamente old-fashioned – ou deveria dizer tradicional? – ao manter uma perspectiva sóbria.”
Observações corretíssimas, me parece. É bem isso.
Cada vez mais gosto de narrativas old-fashioned, tradicionais. Ou – por que não dizer? – acadêmicas.
Este aqui é um filme que de fato merece ser visto.

Anotação em setembro de 2018

Juventudes Roubadas/Testament of Youth
De James Kent, Inglaterra-Dinamarca, 2014
Com Alicia Vikander (Vera Brittain)
e Taron Egerton (Edward Brittain, o irmão), Kit Harington (Roland Leighton), Colin Morgan (Victor Richardson), Dominic West (Mr. Brittain), Emily Watson (Mrs. Brittain), Joanna Scanlan (tia Belle), Miranda Richardson (Miss Lorimer, a professora em Oxford), Daisy Waterstone (Clare Leighton), Nicholas Le Prevost (Mr. Leighton), Anna Chancellor (Mrs. Leighton)
Roteiro Juliette Towhidi
Baseado na autobiografia de Vera Brittain, Testament of Youth
Fotografia Rob Hardy
Música Max Richter
Montagem Lucia Zucchetti
Casting Lucy Bevan
Produção BBC Films, BFI Film Fund, Heyday Films,
Hotwells Productions, Lipsync, Nordisk Film Production.
Cor, 129 min (2h09)

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