29 de março de 2024
Sergio Vaz

Carnaval, desengano


Na avenida, as campeãs da imparcialidade e da cegueira. Por Sérgio Vaz
É absolutamente fantástico, incrível, inacreditável como o lulo-petismo ainda consegue enfeitiçar tanta gente tida como intelectual e artista – nessas categorias incluídos também carnavalescos e chefões de escolas de samba –, conforme demonstraram os desfiles da Marquês de Sapucaí e os histéricos aplausos dos seguidores da seita à Tuiuti e à Beija-Flor.
O PT passou pelo poder durante 13 anos, quatro meses e 12 dias como uma nuvem de gafanhotos, devorou tudo o que viu à sua frente, destruiu a economia, deixou o país no fundo da maior recessão de sua história. Mas, para tantos intelectuais e artistas, o PT distribuiu renda, encheu as universidades e os aviões de ex-pobres, foi mais probo que Madre Teresa de Calcutá, e toda a corrupção que existe no país é obra do vampiro Michel Temer, que aliás foi eleito pelos coxinhas que batiam panelas contra o governo popular.
Os artistas e intelectuais petistas – aí incluídos alguns dos grandes bicheiros e chefões de facções criminosas que comandam as escolas de samba do Rio de Janeiro – usam fantásticas peneiras para separar o trigo do joio. Nas peneiras ficam políticos de diversos dos partidos que eram os aliados dos governos Lula e Dilma – PMDB, PP, PR, o escambau. Já o próprio PT mais seus satélites PCdoB, PSOL, esses escapulem milagrosamente através das frestas. São puros, quase tão puros quanto o líder maior, que, como bem disse uma marchinha que não foi cantada no Sambódromo, deveria ser proclamado papa – Papa Luiz 51.
É como a história do gato de hotel que era tão exigente que, quando lhe serviam café com leite, tomava só o leite e deixava o café.
É assim que funciona o filtro dos artistas e intelectuais lulo-petistas: até o dia 12 de maio de 2016, eram todos da base aliada. No dia seguinte, alguns eram joio, outros trigo; alguns eram café, outros leite. A turma do PT era angelical – a outra parte da mesma turma era bandida, corrupta, golpista.
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Conforta, no entanto, ver que não é todo mundo que se rende à graça, ao charme, à beleza das escolas de samba que desceram a lenha no atual governo esquecendo-se daqueles 13 anos, 4 meses e 12 dias petistas.
“Quando se contam histórias tão recentes, como a das reformas e a da corrupção endêmica brasileira, deve-se levar em conta que elas ainda estão em curso e, portanto, vivas na memória das pessoas”, escreveu Ascânio Seleme em O Globo na quinta, dia 15/2. “Se a história atravessar, será fácil perceber. A Beija-Flor, por exemplo, acertou ao retratar o Rio de Sérgio Cabral, com seus jantares fartos e guardanapos na cabeça, mas errou ao praticamente ignorar o PT no seu enredo de ratazanas.
E Ascânio Seleme prossegue:
“A escola mostrou alegoricamente o assalto à Petrobras, mas sem qualquer referência aos governos Lula e Dilma. Corretamente, a Beija-Flor colocou uma ala de políticos de terno carregando malas de dinheiro, numa alusão direta a um primo do senador Aécio Neves e ao deputado Rodrigo Loures, amigo do presidente Michel Temer, que foram filmados pela Polícia Federal com malas iguais. Mas se era para mostrar cédulas, por que não as cuecas petistas inchadas de dólares ou as caixas de Geddel?
“Na casa de tolerância da Petrobras, a escola mostrou empreiteiros com os bolsos dos paletós e das calças cheios de cédulas. Mas não houve menção aos tesoureiros do PT e de partidos aliados sendo presos em escala industrial por uso indiscriminado de caixa dois repletos de dinheiro dos mesmos empreiteiros nas campanhas eleitorais.
“E em se tratando da corrupção brasileira, não poderiam faltar o tríplex e o sítio do ex-presidente Lula. Nada é mais emblemático neste ambiente que os dois imóveis, mesmo para aqueles que dizem não existir provas de o apartamento do Guarujá ser mesmo de Lula. O fato é que o ex-presidente foi condenado a 12 anos de cadeia por sua causa. Como o tríplex poderia faltar neste enredo? E que alegoria mais simples e eficiente se faria com a sua fachada.
“Sobre a Tuiuti, pode-se dizer que fez uma leitura parcial da história das reformas. Foi correta a citação ao presidente Temer. Não há dúvida de que ele foi a principal personagem das reformas criticadas pela escola. Do alto de um carro, com a faixa presidencial, o presidente era caracterizado como um vampiro, talvez porque o carnavalesco Jack Vasconcelos o veja sugando o sangue dos pobres brasileiros indefesos. Tudo bem, carnaval é assim mesmo, e claramente a escola tinha um lado.
“Mas, de maneira inusitada, a Tuiuti criticou a crítica. Colocou na avenida, como fantoches, personagens vestidos com a camisa da seleção brasileira batendo panelas. Talvez quisesse se referir aos que apoiaram as reformas de Temer, mas a história diz que aquelas manifestações foram na verdade em favor do impeachment da ex-presidente Dilma. Apesar de ser estranho fazer crítica a manifestações, uma vez que ela foi feita, por que não criticar também as favoráveis a Dilma?
“E, da mesma forma, só apareceram fantoches amarelos ao lado dos patos da Fiesp. Como se todos os manifestantes que apoiaram o impeachment de Dilma fossem manipulados pelo sindicato patronal da indústria paulista. E aqui, mais uma vez, a parcialidade da Tuiuti não mostrou os fantoches da Central Única dos Trabalhadores, do MST e do MTST, os movimentos dos sem-terra e sem-teto ligados ao PT, que ajudaram a dar volume às manifestações a favor de Dilma e em defesa de Lula.”
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O artigo de Ascânio Seleme evolui com perfeição no quesito parcialidade – um quesito largo, amplo, que inclui componentes sérios, pesados, como desonestidade intelectual, cegueira ideológica. Em linguagem bem simples, bem povão, falta de caráter – ou, para ser ainda mais claro, filha-da-putice.
Outras vozes falam de um quesito também importantíssimo, que não pode ser deixado de lado: a legitimidade de quem desfilou na avenida suas alegorias de desonestidade intelectual e cegueira ideológica.
Essas escolas têm moral para fazer as críticas (parciais, pela metade, escolhendo alguns acusados e deixando outros de fora)?
Pois se elas são teúdas e manteúdas por chefões da contravenção, das milícias e até mesmo de facção criminosa…
Se elas ficaram em reverencial silêncio durante 13 anos de governo corrupto, o mais corrupto de que já se teve notícia.
Se elas bajularam a ditadura, lamberam as botas dos milicos.
Se elas outro dia mesmo fizeram a elegia de um dos mais grotescos ditadores africanos.
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A ótima newsletter Meio, feita pelo jornalista Pedro Doria e sua equipe, resumiu assim os resultados da apuração do Rio de Janeiro:
“Deu Beija-Flor. A escola de Nilópolis é a Campeã do Carnaval 2018 do Rio. A escola fez um paralelo entre o romance Frankenstein e as mazelas sociais do país. Mostrou o ‘Brasil monstruoso’ da corrupção, desigualdade, violência e intolerâncias.
“Pois é… Aniz Abrahão David, o Anísio, patrono da escola, foi condenado em 2013 a 47 anos de prisão por corrupção — o suborno de magistrados e autoridades. Comandante de uma quadrilha de jogo ilegal por natureza violenta, está livre graças a um habeas corpus negado pelo TJ mas concedido pelo STJ. Seu irmão, Farid, é prefeito de Nilópolis. Ao Globo, em meio às comemorações, Anísio disse que não via incoerência entre sua vida e o enredo. “Sou a favor de fazermos protestos, está no DNA da escola.”
“A Paraíso de Tuiuti, que também levou um enredo político à Sapucaí, ficou em segundo lugar.
“A imprensa lembra sempre de Anísio ao falar da Beija-Flor. A relação entre o Bicho e escolas de samba é pública. A do tráfico é discreta. O homem forte do Morro do Tuiuti não é bicheiro, é Marcelo Boto, um dos líderes do Comando Vermelho no Rio. O enredo, sobre escravidão, não citou tráfico de drogas como um dos escravizadores da população mais pobre, no Brasil.”
Maravilha de texto.
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“Por que, neste momento, Beija-Flor e Tuiuti viraram ícones da luta política?”, pergunta, em artigo no Estadão desta quinta, 15/2, a professora e pesquisadora Rachel Valença, autora de livro sobre a Império Serrano. “A explicação que encontro é que está em falta um canal de expressão da revolta, da justa insatisfação e do desencanto do brasileiro com a situação do País. Por isso estão aceitando inadvertidamente o grito que sai da boca errada. As vencedoras não são as vozes indicadas para clamar por justiça e liberdade, porque ambas são usuárias, na vida interna, de práticas antidemocráticas.”
E Rachel Valença, que entende do riscado, especifica, explicita:
“A Beija-Flor fez enredos elogiosos à ditadura no início da década de 1970 e com isso subiu ao Grupo Especial, onde se mantém até hoje. Nos arquivos da ditadura se encontra uma carta dirigida ao general ditador, solicitando ajuda para manter a escola na elite do carnaval, para continuar louvando os feitos da ‘Revolução’. Chegada a democracia, não se inibiu de cantar em enredo os feitos do então presidente Lula. Há dois anos, louvou a Guiné Equatorial e seu ditador. Para mim, isso tem nome: oportunismo. Quando o samba-enredo nos conclama a “aprender com a Beija-Flor”, eu me pergunto se estou interessada nas lições que ela tem a ensinar.
“Quanto ao Paraíso do Tuiuti, sua trajetória é maculada por episódios de truculência e pela adoção de práticas internas alheias à democracia. O grupo que tomou o poder na escola há cerca de 15 anos, após a chegada da escola ao Grupo Especial em 2001, foi o mesmo que, após levar a escola ao Grupo B, tramou a fusão dos grupos A e B para que a escola subisse sem vitória. No carnaval passado, última colocada, não foi rebaixada graças a um acidente que provocou a morte de uma profissional da imprensa, atropelada por um carro alegórico desgovernado do Tuiuti. Com isso, não houve rebaixamento e a escola ficou na elite.”
Rachel Valença não é neoliberal, coxinha, reacionária. De forma alguma. Ela conclui assim seu artigo afiado que nem peixeira de baiano, enfiando a peixeira na Tuiuti:
“Nos preparativos do carnaval deste ano, acabou com a disputa interna para escolha do samba-enredo, prática que faz parte das tradições e ritos das escolas e suas alas de compositores – e encomendou samba a compositores de reconhecido talento, em um atalho muito desrespeitoso com os poetas da escola. Zumbi, de onde nos assiste, deve estar envergonhado com esse ‘quilombo da favela’. Tanto quanto a maior parte dos brasileiros, quero justiça e igualdade. Mas, em momentos de polarização, a esquerda deve ficar atenta para não comprar gato por lebre.”
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A professora e pesquisadora está certíssima: as pessoas de fato de esquerda – assim como todos os demais brasileiros – devem ficar atentas para não comprar gato por lebre.
Já dos tais intelectuais e artistas lulo-petistas, desses infelizmente não se pode esperar que fiquem atentos à realidade. Têm demonstrado, à exaustão, ad nauseam, que teimam em não querer pensar, ver, ouvir. São absolutamente cegos, em seu fanatismo, em sua jihad em favor da quadrilha de gafanhotos chefiada por São Luiz de Garanhuns.

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