14 de outubro de 2024
Colunistas Ligia Cruz

O boato é atemporal

Imagem: Google Imagens – Meme Generator (imagem meramente ilustrativa)

A santa ignorância e a santa sacanagem são irmãs siamesas. A primeira é fruto da falta de informação e a segunda é sabotagem pura, com toda sua carga virulenta.

O que está acontecendo hoje no Brasil já ocorreu no século XVIII, durante a epidemia de varíola, em uma versão menor de oposição política, mesclada com perversidade e estupidez. Tudo isso no mesmo pacote, amarrado com mentiras e notícias falsas.

A epidemia da varíola do passado gerou uma crise sanitária severa no mundo todo, ceifando entre 300 milhões a 500 milhões de vidas, somente no século passado. Estima-se que cerca de 30 mil indígenas tenham morrido pela doença. Tão temida como a atual, guardadas as proporções, levou a população humana ao desespero.

No Brasil, a varíola foi identificada pela primeira vez em 1563, em Itaparica, BA, e evoluiu em surtos ao longo dos séculos. Sua extinção só se deu em 1977.

Na época inicial da doença, o Brasil vivia em tempos do império, sujeito às decisões de Portugal. A doença devastou países europeus, migrou para o Canadá, países do Pacífico e chegou às Américas, através das embarcações que navegavam entre o Velho Continente e suas colônias.

A cura chegou em 1796, mas a varíola não foi erradicada de momento porque o preconceito chegou antes. O médico inglês Edward Jenner, observou que camponeses contraíam uma variante mais leve do vírus na ordenha de suas vacas e isso aguçou sua curiosidade.

O cientista viu semelhanças entre o pus que havia nas pústulas humanas com as das tetas das vacas e decidiu, então, tentar a cura através da aplicação do conteúdo purulento das vacas em cobaias humanas. Nessa época não havia impedimento de envolver pessoas em experimentos científicos. Ou perdia-se uma pessoa para a varíola ou tentava-se salvá-la por mais asqueroso que fosse. Daí surgiu o termo vacina, em alusão à “vacca”, em latim.

A cura se daria em inocular o pus das bexigas de vacas doentes nas pessoas e assim estimular o sistema imunológico a desenvolver defesas. Mesmo sem todas as etapas de testes, validação e resultados, conhecidos hoje, o médico obteve resultados positivos, em um momento em que a epidemia de varíola se alastrava mais uma vez.

Ao contrário do que se dizia, Jenner não tinha nada de tosco. Era médico, naturalista e assistente de cirurgias desde os 14 anos. Estudou o vírus durante muito tempo e conhecia os ciclos e características de evolução da doença. Foi meticuloso em suas observações e aos 47 anos descobriu como combater a varíola. Graças a ele a doença foi erradicada em todo mundo, em 1977.

Até bem pouco tempo, quem nasceu até os anos 1970, no Brasil, conheceu esse método de vacinação: quebrava-se a parte superior da ampola, com ela mesma arranhava-se a pele e aplicava-se o conteúdo sobre o ferimento. Se houvesse reação, a pessoa ficava, no máximo, com uma pequena cicatriz no braço. Se nada acontecia, era porque o sistema imunológico da pessoa já havia eliminado o vírus. Hoje não há mais humanos reativos.

Só que, no passado, o método de cura não foi bem aceito pela população. Pais e mães rebelavam-se contra o governo, escondendo seus filhos dos agentes de vacinação, temendo que as crianças fossem infectadas por doenças bovinas e ficassem com características de bois. Esse tipo de reação ganhou corpo durante mais de 200 anos, devido às campanhas difamatórias que a vacina sofreu nos países.

No auge da maior mortalidade, D.João VI, regente da coroa portuguesa no Brasil, mostrou os próprios filhos sendo vacinados contra a varíola, em praça pública, para estimular os súditos a seguirem o exemplo. Ele havia perdido um irmão, um genro, um filho para a doença e a própria mulher, dona Carlota Joaquina, foi infectada e quase morreu. Sobreviveu por um triz, com cicatrizes profundas na face.

Quando transferiu a corte portuguesa para o Brasil, já em 1811, D. João criou a Junta de Instituição Vacínica da Corte,no Rio de Janeiro, para promover a vacinação em massa, oficializando o comando da erradicação de epidemias pela coroa.

Assim mesmo, políticos e pessoas influentes à época batiam na monarquia, contrários à vacinação da varíola, que fazia muitas vítimas por aqui. Os ingredientes da rebeldia eram a desinformação, o medo, a repulsa e a politicagem.

Enquanto ocorriam os debates contrários, o contágio saia de controle, levando uma enormidade de pessoas à morte e o governo ao desgaste.

O que aconteceu no século XVIII foi exatamente o mesmo que hoje: a disseminação de notícias falsas para desestabilizar o governo.A diferença é que não havia mídias sociais, WhatsApp e nem deep website para plantar notícias infundadas de lá e cá. Era tudo na base do boca-a-boca e da panfletagem anônima, que corria solta pelos vilarejos e capitais de estados.

As informações falsas à época, eram fomentadas também na fervura dos debates por figuras influentes, com base em interpretações nada empíricas e por pura maldade.

Enquanto a fofoca ganhava as ruas, a epidemia da varíola rendeu até mesmo um livro do escritor português Heleodoro Carneiro (que se intitulava encarregado pelo príncipe regente de Portugal), com o título principal “Vacchina e as suas funestas consequências”, um verdadeiro palavrório contra o método científico inglês. Dizia-se que crianças e jovens não podiam ser vacinadas devido à falta de credibilidade científica e o povo reverberava tolices como o medo de que nascessem crianças com aparência de bezerros.

Na verdade, o método do Dr. Jenner foi o de observação. O médico colocou todos os seus conhecimentos em favor de tentativas de contenção da epidemia da varíola, o flagelo daqueles tempos.

Desde o final dos anos 1700 para 1800, de nosso tempo, as notícias falsas eram tão voláteis naqueles tempos como hoje. Tanto que, na vila mineira de Paracatu, o presidente da Câmara, equivalente a prefeito à época, teve sua casa apedrejada e ele próprio escapou de um linchamento por populares quando divulgou a agenda de vacinação contra a varíola.

A revolta se deu porque folhetos anônimos panfletados pela cidade alertavam que o político pretendia matar a todos. Tempos depois apurou-se que a boataria partiu de um juiz da própria cidade, desafeto político do atual.

No Brasil, a vacina da varíola tornou-se obrigatória em 1837 para crianças e em 1846 para adultos, mas mesmo assim não foi 100% porque não havia produção em escala do imunizante, que só começou em 1884.

Já na República, em 1904, Oswaldo Cruz propôs ao governo a obrigatoriedade nacional da vacinação.

A comparação entre a epidemia da varíola e a atual pandemia da Covid-19 é a dinâmica e agressividade dos vírus e a adição de novos agentes na crise. Além das características mutáveis e mortais do atual coronavírus, as intrigas palacianas, disputas partidárias, o fato novo é o engajamento da Corte Suprema do país a um plano político maior para inviabilizar o atual governo, tomando partido da oposição. Soma-se a isso informações falsas, tal como no século XVIII, mais teorias conspiratórias internacionais. Todo mundo está batendo cabeças e os laboratórios fazendo a festa.

Se naquela época não nasceu nenhuma criança com traços de bezerro, não há de ser agora que humanos nascerão coroados.

Vamos nos vacinar sim!

Entre mobilizar ânimos e recursos para combater nessa guerra virológica mundial, que diariamente dita novas regras, há quem perca tempo e dinheiro para defender os próprios interesses.

E viva a imbecilidade humana!

Ligia Maria Cruz

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

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