Em pleno Parque Gorki, construído para o lazer e descanso dos proletários da era soviética, surgiu uma galeria de vanguarda: a Garage. A galeria foi construída com dinheiro do oligarca Roman Abramovich, dono do time do Chelsea. No bar, há muita gente usando laptop, um ao lado do outro, e, para comemorar a Copa de 2018, uma exposição do fotógrafo alemão Juergen Teller.
Ele faz arte e propaganda, às vezes ironizando a propaganda no seu trabalho artístico. Vive em Londres, e uma das fotos que exibe no seu site é uma pose ao lado de Pelé. No domingo em que visitei o Parque Gorki e passei pela Garage, havia pouca gente. Mas nenhuma restrição para se ver a foto de um homem tomando cerveja, com um cigarro entre os dedos e pisando na bola.
Pensei, então, num paradoxo. A Rússia tem leis restritivas sobre a homossexualidade que, no Brasil, comparativamente, é vista de forma liberal. Em relação ao nu em galerias, a julgar pelo que vi, a situação se inverte: os russos são mais liberais.
Percebi, através do livro de Michael Idov “Dressed up for a riot” — em português, significaria “Produzido para uma revolta” —, que há uma forte interação entre vanguarda estética e socialites em Moscou. Idov dirigiu a revista masculina “GQ”, da Condé Nast, na Rússia. Ele nasceu nos países bálticos, é fluente em russo e inglês. Ao visitar a Garage, senti essa proximidade que Juergen Teller encarna tão bem, transitando das páginas de propaganda para as galerias de arte.
Tudo isso é visto na Rússia como uma identificação com o Ocidente, e não chega a incomodar o regime porque certamente o vê circunscrito à minoria.
O puritanismo do regime soviético não se manifesta, por exemplo, no caso do aborto, que é permitido e tem um alto índice. Putin tem demonstrado sempre que pode seu respeito pela religião. Não posso atestar a autenticidade de sua fé. O que a história mostra, no entanto, é que, sem a Igreja, na Rússia é muito difícil um projeto de unificação nacional em torno de um objetivo.
Na Segunda Guerra, Stalin percebeu que apenas o comunismo não era cimento suficiente para unificar os russos no combate ao nazismo. Ele se tornou mais tolerante com as religiões, e a Igreja teve muito mais desenvoltura do que nos anos revolucionários.
Não só a Igreja, mas também os opositores sentiram um clima de alívio durante a guerra. A poetisa Anna Akhmatova, por exemplo, havia sofrido muito, tinha um filho preso pelo regime, mas, num diálogo com Nadejda Mandelstam, afirmou que aqueles eram os melhores tempos de sua vida.
A exposição no Garage me fez voltar ao tempo da leitura sobre a História cultural do país. A famosa busca da alma russa sempre se voltou, entre outras, para a singularidade da Igreja. Essa busca alimentou os sonhos de uma alternativa salvadora que se opõe à decadência ocidental. No momento em que a igreja romana se mostra mais tolerante à homossexualidade, com o Papa Francisco, a posição restritiva russa pode ser também a afirmação dessa expectativa.
A relação Igreja-governo aqui, como em tantos outros lugares, é difícil de ser elucidada por um viajante de passagem. A proximidade entre os dois fortalece a visão de uma Rússia singular, capaz de ser um alternativa moral ao Ocidente. Ao mesmo tempo, os fortes impulsos de identificação com o mundo ocidental marcaram a década de 1990, após o colapso da União Soviética.
Putin é uma nova tentativa de síntese, uma espécie de freio de arrumação. Ele veio da região mais europeia da Rússia, São Petersburgo. Mas percebeu que era preciso se apoiar na tradição religiosa e, sobretudo, recuperar a sensação de uma potência mundial.
É tudo muito difícil de ser visto de uma forma linear. Creio que um russo teria dificuldades de ver a nudez no brasileiro e as campanhas contra o nu artístico.
Cada um à sua maneira, Rússia e Brasil não são nada simples de entender.
Artigo publicado no Globo em 15/06/2018
Fonte: Blog do Gabeira
Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.