De: François Ozon, França-Alemanha, 2016
Nota: ★★★★
(Disponível na Amazon Prime Video em 8/2024.)
François Ozon, esse grande cineasta especializado em não ter especialidade, e passa com brilho por qualquer gênero, ligou o modo Sensibilidade para fazer Frantz (2016). Que maravilha de filme!
Frantz é uma mistura de fantástica, belíssima, tristíssima história de amor com um hino pacifista. Examina essa coisa maluca que é o patriotismo e, de quebra, faz um apanhado de como as relações humanas podem se basear em mentiras.
A ação se passa primeiro em uma pequena cidade da Alemanha, Quedlinburg, depois em Paris, em 1919, pouco após o fim da Primeira Guerra Mundial, em que jovens franceses mataram milhares de jovens alemães e jovens alemães mataram milhares de jovens franceses.
O Frantz do título era um dos alemães mortos nos campos de batalha. Por uma dessas ironias de que são feitas as belas histórias, tanto as da vida real quanto as criadas pela imaginação dos artistas, Frantz adorava a França, Paris, a cultura francesa. Havia estudado durante um tempo na capital francesa, antes da guerra. Era apaixonado por Verlaine – e por Anna, uma moça bela, igualmente apaixonada por ele, pela França, por Verlaine. Anna, como Franz, falava e escrevia bem em francês. Recitava com bela voz a “Chanson d’Autonne” de Verlaine, aquela que diz “Les sanglots longs / Des violons / De l’automne / Blessent mon coeur / D’une langueur / Monotone. (…) Je me souviens / Des jours anciens / Et je pleure / Et je m’en vais / Au vent mauvais”.
Quando o filme começa, em uma fotografia em preto e branco de beleza radiante, Anna está fazendo o que veremos que faz sempre: levando flores ao túmulo de Frantz.
Ao chegar ao cemitério, surpreende-se ao ver um moço de pé junto do túmulo do homem com que ela iria casar logo que terminasse a guerra. Embora de longe, Anna percebe que o rapaz está chorando. Espera que ele se distancie, saia do cemitério, e então pergunta ao guarda que está ali se ele sabe quem é aquele estranho. O guarda mostra uma moeda francesa que o rapaz provavelmente havia dado a ele – e cospe nela.
Anna não tem mais família, estão todos mortos. Ela vive na casa dos pais de Frantz, que a tratam como se fosse sua filha.
A trama – belíssima, tocante, emocionante – que se desenrola a partir dessa sequência de abertura gira em torno do relacionamento que se estabelece entre aquele jovem francês, Adrien Rivoire, e Anna e os pais de Frantz. Em especial, entre o jovem francês e a jovem alemã.
Logo depois de ser visto no cemitério por Anna, Adrien se apresenta na casa do doutor Hans Hoffmeister, o pai de Frantz. O médico o recebe em seu gabinete pensando se tratar de um paciente. Quando, falando em alemão, Adrien se identifica como francês, o dr. Hoffmeister diz que não pode atendê-lo. Adrien começa a dizer que precisa falar com ele, mas o velho médico é duro, rígido – altera a voz e manda o francês sair dali.
Como Adrien ainda não havia se levantado da cadeira, o dr. Hoffmeister mostra para ele uma foto emoldurada de Frantz: – “Todos os franceses são para mim os assassinos do meu filho”.
Antes de ir embora, o rapaz diz: – “O senhor tem razão, doutor. Eu também fui um soldado. Eu também fui um assassino”.
As mulheres em geral sentem as coisas de maneira diferente, menos dura, mais suave, e então a mãe de Frantz, Magda, e a jovem que seria a esposa dele vão procurar o médico em seu gabinete de trabalho. Ele não está – e então elas vão até o quarto de Frantz, que os pais mantiveram exatamente como o filho o deixou, como se ainda fosse voltar um dia. Perguntam como foi, o que o francês disse a ele. Anna informa que ele esteve junto ao túmulo de Frantz; Magda diz que talvez ele tenha sido amigo de Frantz, durante sua estadia em Paris.
Com a aprovação de Magda, Anna vai ao hotel da pequena cidade e entrega ao funcionário da recepção uma carta endereçada ao francês, convidando-o a fazer nova visita à casa.
A sequência em que Adrien Rivoire é recebido por Magda e Anna – e depois também pelo doutor Hoffmeister, que se junta a eles com evidente relutância, mas curioso – é absolutamente extraordinária. Cinema da mais alta qualidade – tudo tecido com uma carga imensa, incomensurável de sensibilidade.
Às primeiras perguntas de Magda sobre sua relação com Frantz, o francês chora. E a mãe do filho único morto na guerra pouco antes de fazer 24 anos – exatamente a idade do visitante – diz:
– “Agradecemos por suas lágrimas e também pelas flores no túmulo dele. Estamos muito emocionados por falar com um amigo dele, que o conhecia tanto e se lembra dele. Não falo isso só porque sou a mãe dele. Anna também.”
– “Nós nos casaríamos no outono”, explica Anna. “Era a estação favorita dele. Ele me ensinou o poema de Verlaine sobre o outono.”
Magda diz: – “Deve ser muito difícil para o senhor conhecer a família dele.”
Anna: – “O senhor pensa nele sempre? E nunca consegue esquecê-lo?”
Adrien: – “Como eu poderia esquecê-lo?”
Nesse momento, o dr. Hoffmeister se levanta e sai da sala.
Magda: – “Por favor, perdõe o meu marido. Ele amava muito Frantz. Era nosso único filho. Ele preferia ter morrido no lugar dele.”
Adrien: – “Eu também.”
Anna, depois de segundos de doloroso silêncio: – “O senhor pode nos contar como o conheceu?”
E Magda acrescenta: – “E como ele estava, da última vez que o viu?”
Meu, que situação! Que momento, que intensidade de drama…
“Todos os franceses são para mim os assassinos do meu filho” – mas aquele francês chora por Frantz, viajou até a cidade de Frantz, leva rosas a seu túmulo. Conviveu com Frantz! Para aquelas três pessoas, falar com o francês agora era sorver um pouco da vida de Frantz. De alguma maneira, era como se Adrien trouxesse para dentro da casa um pouco de Frantz…
Diante das perguntas das duas mulheres – ele estava feliz na última vez em que vocês se viram? – Adrien diz que sim, ele estava feliz. – “Eu o peguei no hotel. Fomos ao Louvre. Era um dia tão bonito. Ele estava contente de ver os quadros.”
Magda dá um sorriso – está vendo o filho vivo, feliz.
– “Ficamos um longo tempo admirando uma obra de Manet. Sim, eu me lembro. Era um quadro de que eu gosto muito. A pintura de um jovem pálido, com os olhos voltados para cima.”
Estamos com 18 dos 113 minutos que dura o filme, e, depois daqueles vários close-ups em magnífico preto e branco dos rostos de Magda, de Anna e de Adrien durante o diálogo, corta, e vemos, em cores, dois rapazes caminhando por um largo corredor do Louvre. Dois jovens bonitos, bem vestidos, a vida inteira pela frente, o francês Adrien e o alemão Frantz.
É emocionante, é uma maravilha. Grande cinema, sensibilidade saindo pelo ladrão, um drama impressionante, feito para plateias maduras.
Essa beleza de começo do filme, esses 20 minutos iniciais em que ficamos conhecendo os personagens, aprendemos quem eles são, compreendemos a intensidade do drama que os envolve – isso me envolveu tanto que não consegui me impedir de relatar tudo em detalhes. E acabei deixando de lado uma lei que sigo sempre nestas anotações aqui, a de ir dando o nome dos atores assim que seus personagens são citados.
Achei que apresentar os nomes iria truncar um tanto o relato. Mas pesou também o fato de que eu não conhecia nenhum dos atores que fazem esses quatro personagens principais. Na verdade, não conhecia sequer um dos atores que François Ozon escolheu para fazer este seu filme em modo Sensibilidade.
Foi uma beleza de escolha. Paula Beer e Pierre Niney, os jovens atores que fazem Anna e Adrien, têm talento e o perfeito physique du rôle. Ela é bem magra, alta – o corpo dá uma certa impressão de fragilidade, confirmada com a atuação, as expressões do rosto, os movimentos com as mãos. É bonita, tem os olhos muito claros, límpidos, cativantes, uma bela postura. Não é de se estranhar que o tal de Kreutz, um conhecido do dr. Hoffmeister, fique a fim de fazer a corte a ela, já que Frantz, afinal, está morto. Ao mesmo tempo, no entanto, Paula Beer-Anna não é assim uma beldade, uma jovem mulher de fechar o comércio, nem é uma beleza toda certinha, à la Barbie.
Pierre Niney também é alto, tem o rosto bonito – e sabe ser elegante, aquela elegância que minha mãe diria que vem de berço. O espectador só saberá disso quando a narrativa já está bem adiantada, mas Adrien Rivoire vem de família muito rica, a alta burguesia do campo francês. Uma família muito mais rica que a alemã que ele passa a visitar no primeiro ano após o final da Grande Guerra, a que diziam que tinha vindo para acabar com todas as guerras.
Paula Beer é de Mainz, Renânia, perto de Frankfurt, não muito longe da fronteira com a França. Meu Deus! É da classe de 1995, da geração de Saoirse Ronan, Dakota Fanning, Margaret Qualley – e estava, portanto, com 21 anos na época do lançamento do filme, 2016. Exatamente a idade que a gente imagina que era a de Anna.
Jovem demais – mas não uma iniciante. Começou a carreira no cinema em 2010, com apenas 15 anos. Em meados de 2024, quando escrevo esta anotação, tinha espantosos oito prêmios e mais 15 indicações. Em 2020, ganhou o Urso de Ouro de melhor atriz no Festival de Berlim por Undine, uma mistura de drama e fantasia dirigida por Christian Petzold, e, por sua bela interpretação como essa pobre Anna, teve indicação ao César como atriz mais promissora, ou maior esperança feminina.
Pierre Niney é de Boulogne-Billancourt, cidadezinha de Hauts-de-Seine, classe 1989. E – uau! – é ator da excelsa Comédie Française. Em meados de 2024, tinha nada menos de 43 títulos na filmografia, quatro prêmios e oito indicações. Dois anos antes deste Frantz, havia interpretado o personagem titulo de Yves Saint Laurent, a cinebiografia do aclamado estilista francês. E agora em 2024 fez o papel título de O Conde de Monte Cristo, uma nova adaptação para o cinema do romance de Alexandre Dumas.
É. Eu não conhecia Paula Beer e Pierre Niney por simples e pura ignorância. Ou, num julgamento mais brando, pouco conhecimento dos atores mais jovens…
Magda Hoffmeister é interpretada por Marie Gruber, que está no elenco de A Vida dos Outros (2006) e O Leitor (2008), entre outros 138 títulos. O dr. Hoffmeister é o papel de Ernst Stötzner. O jovem Anton von Lucke faz o papel de Frantz Hoffmeister, que aparece em vários flashbacks ao longo do filme. Kreutz, o homem mais velho que faz a corte a Anna, é o papel de Johann von Bülow.
O que relatei da trama belíssima, impressionante do filme foi grande, imenso, dúzias de parágrafos – mas, como disse, foram os eventos mostrados nos primeiros 20 minutos do filme. É, de fato, apenas o começo. O que virá a seguir é denso, pesado, cada vez mais emocionante, mais triste.
Não é spoiler, tenho a certeza, dizer que, ali pelos 20 minutos de narrativa, o espectador pode perfeitamente imaginar que houve entre o jovem alemão e o jovem francês agora morto um grande, apaixonado romance. Isso explicaria a ida de Adrien à cidade de Quedlinburg, enfrentar as reações de repulsa das pessoas; justificaria as emoções fortes que demonstra diante do túmulo de Frantz e depois diante do pai, da mãe e da noiva dele. Seria uma explicação lógica, natural – e fácil.
Creio que foi de fato intenção de François Ozon, ao escrever seu roteiro, ao realizar o filme, ao dirigir os quatro principais atores, levar o espectador a pensar nisso.
Naquela impressionante sequência da segunda visita de Adrien à casa dos Hoffmeister, por exemplo, a câmara mostra em close-up os rostos de cada um dos atores, dos personagens. Anna e Magda demonstram imensa curiosidade em saber notícias do noivo/filho amadíssimo – como se saber notícias dele na França pudesse trazer Frantz de volta para o meio delas, ainda que por pouco tempo. O dr. Hoffmeister, o pai, não diz uma palavra. A expressão dele não é, em momento algum, de deleite, de prazer. É de curiosidade – e alguma inquietude.
Quando o dr. Hoffmeister não aguenta mais continuar ali, se levanta e sai da sala, tive certeza de que ele estava percebendo, naquele momento, que tinha havido uma ligação homossexual de seu filho com o francês. Comentei isso com a Mary, e era essa a mesma sensação dela.
Meu Deus, que beleza de trama! Que trama impressionantemente bem urdida, bem trançada!
A história não é de autoria de François Ozon. O roteiro – excelente, brilhante – é dele, e Ozon é um grande roteirista. Escreveu, muitas vezes com colaboradores, 40 roteiros dos 48 títulos que dirigiu, mas, em geral, seus roteiros não são originais, ou seja, são baseados em obras já existentes.
Os créditos finais de Frantz dizem que o roteiro é de François Ozon “com a colaboração de Philippe Piazzo, livremente inspirado em Broken Lullaby de Ernst Lubitsch”.
Que coisa mais fantástica! Em 2016, o francês François Ozon dirigiu esta coprodução França-Alemanha, passada e rodada nos dois países, com atores alemães representando alemães e atores franceses representando franceses, comme il faut, como tem que ser. E seu filme foi inspirado em um dirigido pelo berlinense radicado em Hollywood Ernst Lubitsch!
Sou um apaixonado por Lubitsch, o homem do Toque, e já tenho neste site alguns filmes dele – mas jamais havia ouvido falar desse Broken Lullaby.
Broken Lullaby é um filme de 1932 – apenas 14 anos após o final da Primeira Guerra Mundial, e um ano, só um ano, antes de Adolf Hitler e seu Partido Nacional-Socialista assumir o poder na Alemanha, e assim começar a contagem regressiva para o início da Segunda Guerra, em 1939.
Àquela altura, Lubitsch já estava radicado em Hollywood havia quase uma década – seu primeiro filme lá havia sido Rosita, de 1923.
O roteiro de Broken Lullaby é de autoria de Samson Raphaelson & Ernest Vajda, com adaptação de Reginald Berkeley. Não era um roteiro original, e sim a adaptação para o cinema da peça teatral de Maurice Rostand. Os créditos de Frantz não fazem menção a Maurice Rostand – o que não indica desonestidade intelectual da parte de Ozon. Está dito, com todas as letras, que o roteiro de Frantz é inspirado no filme de Lubitsch. É provável mesmo que Ozon nem tenha ido à obra original, e criado a sua versão da história apenas a partir de Broken Lullaby.
O nome Rostand tocou levissimamente um sininho na minha cabeça. Sim – Maurice Rostand é filho de Edmond Rostand (1868-1918), o autor da famosérrima peça Cyrano de Bergerac, filmada diversas vezes.
Pai dramaturgo de imenso sucesso, membro da Academia Francesa, mãe, Rosemonde Gérard, poeta, Maurice Rostand (1891-1968) escreveu poemas, romances e peças de teatro. Algumas de suas obras foram escritas a quatro mãos com sua mãe, algo tão raro quanto fascinante.
As indicações são de que ele era um homossexual absolutamente assumido, algo não muito comum na primeira metade do século XX. Uma de suas peças, a última, de 1935, aliás, se chama exatamente Le Procès d’Oscar Wilde. O dramaturgo irlandês (1854-1900), como se sabe, foi processado e condenado por ser homossexual.
A obra que deu origem ao filme de 1932 de Ernst Lubitsch foi publicada em 1925 – apenas sete anos, portanto, após o fim da Grande Guerra que focaliza. Tinha o título de L’Homme que j’ai tué – e esse foi o título com que Broken Lullaby foi exibido na França; no Brasil, o filme se chamou Não Matarás.
Certo: Ozon não criou a história. Mas modificou bastante a trama mostrada no filme de Lubitsch, segundo informa o AlloCiné, o site especializado em cinema francês. Em Broken Lullaby, tudo é mostrado pela perspectiva do jovem francês que viaja à Alemanha para encontrar a família do alemão. (Aproveito para registrar que no filme de 1932 o francês, interpretado por Phillips Holmes, se chamou Paul Renard; o alemão, interpretado por Tom Douglas, chama-se Walter Holderlin, e sua noiva é Elsa, o papel de Nancy Carroll.)
A mudança dos nomes dos personagens não tem importância – mas mostrar os eventos através do olhar de Anna, a noiva do jovem morto, altera substancialmente tudo. Neste Frantz, apenas quando já estamos com 50 minutos do filme que dura 113 o espectador fica sabendo a verdade, o verdadeiro motivo pelo qual o francês Adrien está ali na cidade da família alemã. E, diacho, é uma grande surpresa para o espectador.
Mais ainda, muito mais ainda: como diz o AlloCiné, “uma segunda parte foi adicionada à história original, centrada na personagem de Anna”. Ou seja: toda a viagem de Anna a Paris e depois ao interior francês é criação de François Ozon! ´
É mais do que justificado dizer – como aparece nos créditos finais – que o filme foi “livremente inspirado em Broken Lullaby de Ernst Lubitsch”. Não é uma refilmagem. É outra trama, sem dúvida alguma, a partir dos elementos do filme de 1932.
Não tenho idéia de que como é na obra original de Maurice Rostand, nem no filme de Ernst Lubitsch – ambos feitos no período entre guerras. Mas dá para imaginar que a coisa do patriotismo – o ódio visceral de (quase) todo alemão pelos franceses, e vice-versa – tenha sido um elemento importante.
No filme de François Ozon, é fundamental. O patriotismo, o ódio por todos os da outra nacionalidade, está presente ao longo de todo o filme – mesmo sendo o principal tema as relações pessoais, as relações afetivas.
O guarda do cemitério que cospe na moeda francesa é apenas o primeiro sinal. A frase duríssima do dr. Hoffmeister – “Todos os franceses são para mim os assassinos do meu filho” – é um exemplo forte. Mas há muitos, muitos outros.
O admirador de Anne, esse Kreutz, a convida para a festa da cidade que virá no fim de semana, e ela, jovem viúva sem ter casado, responde que não quer dançar. Mas está convivendo com Adrien, o jovem francês que a faz lembrar do amado morto, e então aceita o convite dele para ir à festa – e dançam. Quando Kreutz vai cobrar dela o “absurdo” que é dançar com um francês, ela responde, com firmeza: – “A guerra acabou. O senhor não lê os jornais?”
A guerra acabou – mas o ódio que as pessoas sentem das outras permanece absolutamente intacto. Como se todos os franceses fossem assassinos de alemães, como se todos os alemães fossem assassinos de franceses.
Adrien enfrenta todo o ódio dos alemães na cidadezinha de Quedlinburg, na primeira metade do filme. Anna enfrentará todo o ódio dos franceses a partir do momento em que entra na França o trem em que viaja rumo a Paris, na segunda metade da narrativa – essa metade inteiramente criada por Francois Ozon.
A sequência em que ela está em um bar, e todos começam a cantar a “Marseillese”, é absolutamente impressionante. Claro que é impossível a gente não se lembrar da sequência de Casablanca em que o herói da Resistência Victor Laszlo inicia a “Marseillese”, e em poucos segundos todos estão cantando, para o ódio mortal dos nazistas presentes.
Mas são situações díspares, opostas, antípodas.
Em Casablanca, a “Marseillese” era um hino contra o opressor, no meio da guerra. Neste Frantz, em um bar parisiense, em tempos de paz, é como se todos os franceses houvessem identificado que Anna, sentada ali sozinha, tinha cometido o crime horroroso, hediondo, de ter nascido do outro lado da fronteira, e estivessem cantando aqueles versos ferozes para incentivar a todos a ir lá e degolar a inimiga.
O padre abençoa a mentira. Nunca tinha visto isto antes
Tão importante no filme quanto a presença dessa coisa idiota, doentia, que é o patriotismo cego, é a questão da mentira. Mas não vou falar muito sobre isso, até porque seria um pouco de spoiler.
Só gostaria de registrar que é impressionante, maravilhosa, a cena em que Anna vai se confessar.
E aqui tergiverso um pouquinho. O escritor e emérito cinéfilo português Manuel S. Fonseca, de quem publiquei textos maravilhosos durante um período no 50 Anos de Textos, dizia, com a maior propriedade, que o catolicismo é a religião mais cinematográfica que há. Frantz confirma esta grande verdade mais uma.
As estatísticas são de que, no pais de Martinho Lutero, há cerca de 30% de protestantes e 30% de católicos. Não é estranho, assim, que Anna seja católica – mas a verdade é que ela teria necessariamente que ser católica, para que houvesse aquela sequência esplendorosa em que ela se confessa.
Acontece quando o filme está com 68 dos seus 113 minutos. Anna confessa: – “Padre, o senhor sabe da minha mentira, e de quanta angústia ela me causa.” Ao que o padre (o papel de Torsten Michaelis) responde à paroquiana que conhece bem: – “Deus, em sua infinita sabedoria, ouve sua prece, minha filha. E, embora Ele condene a mentira, seu silêncio sobre a morte de seu noivo tem puras intenções. Por isso, sua falta é perdoada.”
Anna: – “Então, não devo lhes contar nada?”
O padre: – “O que a verdade traria? Apenas mais dor. Apenas mais lágrimas.”
Não me lembro de nenhum outro filme em que um padre abençoa uma mentira, já que a mentira é para o bem.
Em entrevista na época do lançamento do filme, François Ozon disse que antes de mais nada ele queria, com Frantz, fazer um filme sobre a mentira. Achava interessante fazer o contraste com nossa época “obcecada pela verdade e pela transparência”.
Não há dúvida de que conseguiu.
Frantz teve 6 prêmios e 36 indicações. Ao César, o mais importante prêmio do cinema francês, foram 11 indicações, entre elas as de melhor filme, direção, roteiro adaptado, ator para Pierre Niney, esperança feminina para Paula Beer, fotografia para Pascal Marti, montagem para Laure Gardette e música para Philippe Rombi. Mas só levou o prêmio de melhor música.
No festival de Veneza, Paula Beer levou o prêmio Marcello Mastroianni de melhor jovem ator ou atriz.
No site AlloCiné, o filme tem nota 3,7 em 5, média de 33 críticas, e 4,1 em 5, média de quase 5 mil leitores.
Anotação em agosto de 2024
Frantz
De François Ozon, França-Alemanha, 2016
Com Paula Beer (Anna),
Pierre Niney (Adrien Rivoire)
e Ernst Stötzner (doutor Hans Hoffmeister, o pai de Frantz), Marie Gruber (Magda Hoffmeister, a mãe de Frantz), Anton von Lucke (Frantz Hoffmeister), Johann von Bülow (Kreutz, o que pretende se casar com Anna), Cyrielle Clair (a mãe de Adrien), Alice de Lencquesaing (Fanny, a noiva de Adrien), Axel Wandtke (o recepcionista do hotel), Rainer Egger (o guarda do cemitério alemão), Ralf Dittrich (Adolf), Michael Witte (Gustav), Lutz Blochberger (o homem do lago), Jeanne Ferron (Madame Rivoire, a tia de Adrien), Torsten Michaelis (o padre com quem Anna se confessa)
Roteiro François Ozon
Com a colaboração de Philippe Piazzo
Baseado no filme “Não Matarás/Broken Lullaby”, de Ernst Lubitsch, roteiro de Samson Raphaelson & Ernest Vajda, adaptação de Reginald Berkeley, por sua vez baseado na peça de Maurice Rostand
Fotografia Pascal Marti
Música Philippe Rombi
Montagem Laure Gardette
Casting Simone Bär, Leila Fournier, Sarah Teper
Desenho de produção Michel Barthélémy
Figurinos Pascaline Chavanne
Produção Eric Altmayer, Nicolas Altmayer, Stefan Arndt, Uwe Schott, Mandarin Films, X-Filme Creative Pool, FOZ, Mars Films, France 2 Cinéma, Playtime, Universal Pictures International (UPI). Canal+, Ciné+, France Télévisions, e mais seis.
P&B e cor, 113 min (1h53)
Fonte:50 anos de filmes
Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.