23 de abril de 2024
Sergio Vaz

O Vento Será Tua Herança / Inherit the Wind

De: Stanley Kramer, EUA, 1960.

Nota: ★★★★
O Vento Será Tua Herança, no original Inherit the Wind, é um daqueles grandes clássicos indispensáveis, fundamentais do cinema americano dos anos 40 até meados dos 60.
Lançado em 1960, com a grife do sempre ousado, progressista, liberal Stanley Kramer, o filme continua ainda forte, vívido, poderoso, impactante, apaixonante, 57 anos depois.
Relata uma história real – o famosíssimo caso do julgamento, em 1925, em uma pequena cidade do sulista Tennessee, de um professor de ginásio que ousou desafiar a lei estadual que proibia o ensinamento da teoria da evolução nas escolas públicas. O caso – que chamou a atenção de toda a imprensa americana da época – ficou conhecido como The Scopes Monkey Trial, ou simplesmente The Monkey Trial – O Julgamento do Macaco.
Mas o filme não pretende ser um relato fidelíssimo do caso, uma reconstituição cuidadosa. Toma muitas liberdades. Para deixar isso claro, os nomes de todos os personagens e o da própria cidade foram alterados.
(O professor da vida real se chamava John T. Scopes, e no filme se chama Bertram T. Cates; o nome da cidade é Dayton, e no filme é Hillsboro.)
Nem tem a intenção de ser uma narrativa isenta, neutra – de jeito nenhum. É apaixonadamente contra a lei que proibia o ensino do evolucionismo, é perdidamente pró-Darwin.
Para muitos, poderá parecer anticristão, antirreligião, por ser tão veemente, tão espalhafatosamente a favor do respeito às Ciências. Mas não é, de forma alguma.
É sobretudo um panfletaço vigoroso, forte, poderoso – dos mais belos que o cinema já fez – a favor da liberdade de expressão, do respeito à divergência, ao contraditório.
E, neste sentido, o filme de 1960 é atualíssimo para o Brasil de hoje, um país de um povo que já foi tido como cordial e agora se divide entre os partidários de duas visões diferentes da política, da sociedade, da economia, num clima de beligerância, intolerância, irritabilidade, hostilidade – um clima de guerra em que um lado se recusa a ouvir os argumentos do outro com paciência, atenção, respeito.

Tudo é exagerado, abertamente, entusiasticamente exagerado. É um circo
Três pontos me impressionaram demais, ao rever agora Inherit the Wind. Um deles foi essa coisa de como ele parece se dirigir às duas torcidas do Fla x Flu em que nós, brasileiros, nos dividimos. Um segundo ponto é muito forte, não dava para esquecer: a quantidade de belas frases, diálogos inteligentíssimos, afirmações brilhantes.
Mas creio que o mais me tocou nesta revisão foi como Stanley Kramer encenou seu filme de maneira a fugir do realismo, do naturalismo, como o diabo da cruz, o vampiro da luz do dia, o fanático do raciocínio.
Nada é natural. Nada se parece com pessoas agindo na vida real.
O tempo todo o filme faz questão de dizer que estamos diante de uma encenação, um espetáculo, um teatro. Ou, melhor ainda, um circo.
Os atores exageram – e são grandes atores, em especial os três principais, três monstros, Spencer Tracy, Fredric March e Gene Kelly, e Kramer é um ótimo diretor de atores. Só para se ter uma idéia, nada menos que 14 diferentes atores tiveram indicações ao Oscar em filmes dirigidos por ele.
Grandes atores, ótimo diretor de atores – e no entanto eles exageram. Caso flagrante de overacting – flagrante, e, é claro, propositado. É para realçar que tudo é um espetáculo, um circo.
O experientíssimo Fredric March interpreta Matthew Harrison Brady, um político conhecidíssimo que se oferece para ir à pequena cidade de Hillsboro para atuar junto com o promotor no julgamento do professor que ensinou a teoria da evolução na escola. March, dois Oscars, 3 outras indicações, exagera no exagero. Faz caretas como se estivesse no picadeiro do circo – caretas assombrosas, que é para elas serem percebidas lá longe, nas fileiras mais distantes.
Tudo bem: o personagem dele é ele mesmo um exagero, um populista, um sujeito feito para os palanques – antes de chegar a Hillsboro para a missão de defender a Bíblia e ajudar a condenar o herege aos quintos da prisão, havia sido três vezes candidato à Presidência dos Estados Unidos. Mas Kramer e March exageram no exagero. O cristão quase fundamentalista, fanático Matthew Brady faz caretas grotescas cada vez que ouve uma crítica à sua pessoa. E come. Come feito alguém que não via um prato de comida fazia dias. Come com um apetite pantagruélico, uma coisa horrorosa, sem jeito, impressionante.
Claude Akins, que faz o reverendo Brown, o líder espiritual da comunidade, também exagera dentro do exagero geral. Fala com sua filha, a simpática, pobre Rachel (Donna Anderson), dentro da paz sacrossanta do lar em que vivem apenas os dois, tendo a senhora Brown já partido para encontrar o Senhor, com a voz alta, tonitroante, como se estivesse no púlpito, falando para toda a congregação.

Tudo é encenado, tudo é feito para realçar o exagero
Bem, Matthew Brady é um político e o reverendo Brown é também homem de falar em público, e então seria mesmo de se admitir que falassem em voz muito alta, empostada, com gestos largos.
Mas não são apenas os dois atores que representam o político e o religioso que estão over do over, o exagero do exagero. Tudo, absolutamente tudo no filme, na mis-en-scène, na forma de encenar é propositadamente distante da realidade, da naturalidade.
Tudo é circo, tudo é encenação afetada, exagerada. Desde a primeira sequência – quatro cidadãos importantes da comunidade, em roupas domingueiras, vão se reunindo e marcham quase em passo militar rumo à escola pública da cidade, onde naquele preciso instante o professor Bertram T. Cates (Dick York, um ator com tipo físico perfeito para o papel) está ensinando a seus alunos temas relatados por Charles Darwin em seu livro A Origem das Espécies, publicado em 1859.
Os cidadãos importantes – entre eles o prefeito (interpretado por Philip Coolidge de forma a atrair profunda antipatia do espectador) – levaram com eles um fotógrafo para documentar a cena, o momento em que Bertram T. Cates ouve a voz de prisão por ter desobedecido ao Tennessee Butler Act.
Não se passaram sequer 5 minutos dos 128 do filme, e há uma reunião de todos os cidadãos importantes de Hillsboro para discutir o assunto. Estão em volta de uma mesa forrada com exemplares de jornais de todas as cidades mais importantes do país – as manchetes, especialmente dos grandes jornais do Norte, das metrópoles do Norte, falam depreciativamente do Julgamento do Macaco. O tom é que Hillsboro é uma cidade atrasada, retrógrada – o que é a mais absoluta verdade, mas para os comerciantes, o banqueiro da cidade, aquilo não é nada bom.
Os cidadãos importantes da cidade – e é claro que o reverendo Brown é um deles – se dividem quanto ao que fazer.
Mas a forma com que Stanley Kramer filma a reunião – insisto nesse ponto – não tem absolutamente nada a ver com a realidade, o jeito natural. As pessoas fazem discursos emproados. A câmara faz composições cuidadosas dos grupos de rostos.
É tudo encenado, é tudo um espetáculo circense.

O filme quer realçar que democracia é a convivência de pensamentos díspares
Essa opção de Kramer por essa mis-en-scène assim propositalmente antirrealista, antinaturalista, poderá talvez assustar um pouco o espectador mais jovem que se dispuser a vez esta beleza de filme – ou até mesmo espectadores mais experientes. Confesso que fiquei um pouco assustado nos primeiros 10 minutos de filme, ao revê-lo agora, porque de fato não me lembrava desse tom não realista tão forte.
Mas rapidamente o espectador compreenderá que aquilo é planejado, é intencional, é proposital – e faz todo sentido.
Vejo assim esta opção de Kramer:
OK, o Scopes Monkey Trial, o Julgamento do Macaco, de 1925, na cidadezinha de Dayton, foi importantíssimo, foi um marco histórico – mas foi também um espetáculo, um grande circo, divulgado fartamente pela imprensa da época, dezenas e dezenas de jornais país afora e mais o então jovem e poderosíssimo rádio, que começava a ter cobertura nacional. A presença de repórteres e curiosos de todas as partes do país, de nomes famosos na acusação e na defesa, tudo transformou o julgamento em si em um grande show. Então um filme sobre aqueles fatos, ocorridos 35 anos antes, em que se discutia se era possível ou não falar nas salas de aula de um livro lançado 65 anos antes dos fatos, cem anos antes do filme, não deveria ser apenas um relato fiel, realista, naturalista.
Deveria, é claro, lembrar os argumentos usados no tribunal, as belas frases da defesa e tudo o mais, mas deveria ir além – para mostrar o próprio circo armado lá atrás nos anos 1920, e avançar na discussão, de modo a salientar que o importante, sempre, na democracia, é a convivência entre díspares, diferentes, o respeito absoluto que deve ter sempre o divergente, o contraditório.
Para Stanley Kramer, em 1960, num país que até cinco anos antes estivera mergulhado nas trevas absurdas do macarthismo – a caça às bruxas, a louca perseguição de comunistas ou simpatizantes dos simpatizantes do comunismo ou de qualquer um que insistisse um pouco em falar em justiça social –, era fundamental realçar no filme esse ponto específico: democracia é respeitar as diferenças, as divergências, os que pensam de jeito oposto ao seu.
Democracia é a necessária, fundamental, básica coexistência de ideias díspares – às vezes até mesmo frontalmente antagônicas.
O mais inflamado dos discursos de Henry Drummond, o advogado de defesa do professor que ensinava o evolucionismo – o papel do gigante Spencer Tracy – bate exatamente nessa tecla. A tecla básica, fundamental, que nos Estados Unidos da primeira metade dos anos 1950 esteve esquecida por causa da paranóia anticomunista. E que, infelizmente, neste Brasil da segunda década do novo milênio, faz uma falta danada.

A peça que deu origem ao filme aborda claramente o macarthismo
Stanley Kramer não inventou sozinho – é claro, é óbvio – essa forma de contar, ou relembrar, o Julgamento do Macaco.
Baseou-se em uma peça de teatro que estreou em 1955, quando o macarthismo ainda estava no auge, e diretores, atores, roteiristas tinham seus nomes lançados na lista negra e os estúdios não podiam dar emprego a eles ou porque eram comunistas, ou tinham sido, ou tinham conhecido algum, ou tinham ido a uma reunião com alguns, ou tinham talvez algum dia sonhado que tinham conhecido alguém que tinha conhecido um comunista, ou a prima da empregada da concunhada tinha uma vez dado uma olhada num panfleto comunista.
A Wikipedia diz assim: “Inherit the Wind é uma peça americana de Jerome Lawrence e Robert E. Lee, que estreou em 1955. A história ficcionaliza o Julgamento de Scopes do ‘Macaco’ como uma maneira de discutir os então contemporâneos julgamentos de McCarthy. O debate sobre criacionismo versus evolucionismo tem ressonância ainda hoje, como evidenciam as numerosas reapresentações e adaptações para o cinema depois de sua temporada inicial no teatro.”
Os autores Jereme Lawrence e Robert E. Lee criaram na peça diversas situações para enfatizar a necessidade de respeito às diferenças, às disparidades – que, é claro, foram mantidas pelos roteiristas Nathan E. Douglas e Harold Jacob Smith, e são realçadas pelo diretor Kramer.
Assim, por exemplo, o professor Bertram T. Cates, que ensina o evolucionismo que uma lei estadual retrógrada proibia, namora exatamente a filha única do reverendo Brown, Rachel. Cates não é “um nortista” (o desprezo das pessoas daquela comunidade pelos “nortistas”, os que os haviam derrotado na Guerra da Secessão, é mostrado diversas vezes), não é um estranho, um forasteiro – nem um comedor de criancinhas. É um membro daquela mesma comunidade, ama Rachel, a filha do pastor, e ela o ama – apenas acontece de ele pensar de forma diferente da maneira com que a maioria das pessoas ali pensa.
Quando é preso, é muito bem tratado por Mort Meeker (Paul Hartman), o funcionário da cadeia municipal, que também trabalha como o meirinho, o oficial de Justiça durante o julgamento. Mort passa as tardes jogando cartas e conversando com o único preso da cadeia – diacho, o professor da escola da cidadezinha, gente boa, que todo mundo ali conhece e sabe que não é um criminoso.

Acusador e defensor são velhos amigos, gostam um do outro, se respeitam
Mas o ponto mais fascinante que o filme realça, nessa sua defesa incisiva da necessidade da boa convivência entre díspares, entre pessoas que defendem pontos de vista antagônicos, é o relacionamento entre os dois figurões que vão para Hillsboro participar do julgamento, Matthew Harrison Brady e Henry Drummond – interpretados, como não poderia deixar de ser, por dois figurões do cinema americano, dois dos maiores de sua época e de todas as épocas, Fredric March e Spencer Tracy.
A peça em que o filme se baseia não inventou o fato de que dois figurões de projeção nacional foram para a pequenina cidade sulista participar do Julgamento do Macaco. Pode ter tido muitas liberdades, pode não ter sido rigorosamente fiel à verdade dos fatos, mas neste ponto foi, sim, exata: para participar da acusação, foi até à cidadezinha de Dayton o político William Jennings Bryan, três vezes candidato à Presidência dos Estados Unidos – exatamente como Brady, o personagem de Fredric March. E, do lado do acusado, atuou um advogado de defesa amplamente conhecido e respeitado, Clarence Darrow – que na peça e no filme ganhou o nome de Henry Drummond, o papel de Spencer Tracy.
A grande sacada da versão ficcionalizada da história real é que Brady e Drummond haviam sido grandes amigos, amigos íntimos. Drummond havia trabalhado em campanhas presidenciais de Brady; tinham respeito e admiração um pelo outro. O advogado e a mulher de Brady eram amicíssimos. É uma maravilha ver os diálogos amigáveis entre Drummond e Mrs. Brady – ela é interpretada por Florence Eldridge, a mulher de Fredric March na vida real, uma atriz com um porte de dama, de mulher fina, culta, bem formada. Há brilho nos olhos de Spencer Tracy e Florence Eldridge quando os dois conversam, saudosos um do outro, admiradores um do outro.
Num dos momentos mais belos deste filme cheio de diálogos maravilhosos, bem escritos, é quando Drummond e Brady sentam-se lado a lado na varanda do melhor hotel da cidade, em que estão todos hospedados, e conversam como dois velhos amigos que se reencontram após longo tempo sem se verem – depois de dias de discussões acaloradas dentro do tribunal. Brady pergunta por que os dois se distanciaram tanto, e Drummond responde que talvez tenha sido pelo fato de que Brady ficou parado onde estava, com as mesmas opiniões e posturas de sempre, ao passo que ele mesmo mudou, evoluiu.
Ao ver as sequências em que Drummond e Mrs. Brady demonstram imenso prazer por estarem juntos de novo, e essa em que os dois amigos conversam nas cadeiras de balanço na varanda do hotel, dá uma profunda tristeza pensar em como nós aqui no Brasil destes últimos anos perdemos tantos amigos porque uns de nós éramos Fla e outros eram Flu.

Gene Kelly tem uma rara interpretação dramática como o jornalista presunçoso
Na peça e no filme, o professor Bertram T. Cates escreve cartas a um jornal de Baltimore pedindo ajuda – ele, naturalmente, não teria como pagar um bom advogado de defesa. O jornal do Estado de Maryland, seguramente progressista, a favor da causa do evolucionismo, é que contrata os serviços de Henry Drummond e o envia para a cidadezinha de Hillsboro.
O jornal envia para lá também, para cobrir não apenas o julgamento em si, mas todo o clima da cidade às vésperas do grande acontecimento, um repórter do seu primeiro time, um tal E.K. Hornbeck. O filme mostra esse repórter como um sujeito arrogante, cheio de si mesmo, metido, presunçoso, dono da verdade – uma figura que de fati não é rara na imprensa, essa coisa tão importante mas que é capaz de transformar profissionais em estrelas nacionais.
E.K. Hornbeck é sobretudo um fraseur, um criador de frases de efeito, impactantes, tonitruantes como as vozes de Brady e Drummond no tribunal. Representa o progresso, a luta contra as trevas, e ele demonstra saber muito bem disso – mas, a rigor, no fundo, é um chato de galocha.
O personagem foi inspirado em H.L. Mencken, que de fato cobriu o Julgamento do Macaco. Mencken (1880-1956) é uma figuraça fantástica, que mereceria uma belíssima cinebiografia. Culto, erudito, escreveu The American Language, um estudo de vários volumes mostrando como a língua inglesa foi sendo modificada através dos séculos nos Estados Unidos – entre algumas dezenas de livros sobre todos os assuntos possíveis e imagináveis. Ele ficou popularmente conhecido por sua veia satírica, sacrílega, que não perdoava nada e ninguém.
H.L. Mencken, quer dizer, E.K. Hornbeck é interpretado por Gene Kelly. Que eu saiba, este foi o primeiro papel dramático do genial ator, cantor, coreógrafo, dançarino, diretor – o primeiro filme não musical de sua carreira. (Mas posso estar errado – e minha amiga Jussara Ormond, a maior especialista em Gene Kelly do Brasil, quiçá do mundo, vai me corrigir.)
Consta que a princípio Gene Kelly recusou o papel que Stanley Kramer lhe ofereceu. Kramer insistiu muito – e, depois de algum tempo, argumentou que ele contracenaria com ninguém mais, ninguém menos, que Spencer Tracy e Fredric March. Diante disso, Gene Kelly topou – mas foi um risco danado que Kramer correu, porque, no momento em que fez a afirmação para Kelly, ele ainda não tinha a confirmação de que os dois veteranos atores aceitariam os papéis.

Dezenas de pessoas correram para ver March e Spencer duelando no estúdio
Outros fatos, curiosidades, detalhes sobre o filme e sua produção, muitos tirados da página de Trivia do IMDb:
* O título do filme vem de uma citação que o personagem Matthew Brady faz da Bíblia, e, conforme explica Henry Drummond, vem do Livro de Provérbios, 11:29: “He that troubleth his own house shall inherit the Wind”. “Quem causa problemas à sua família herdará somente vento; o insensato será servo do sábio.”
* Consta que, atraídas pela informação de que Spencer Tracy e Fredric March estavam filmando aquele duelo entre dois grandes oradores, dezenas e dezenas de atores, extras, técnicos lotaram o estúdio em que Inherit the Wind estava sendo rodado. Algumas tomadas tiveram até que ser refeitas porque a audiência aplaudia os diálogos de um ou de outro.
* Deliciosa lembrança do IMDb: tanto Tracy quanto March interpretaram o médico e o monstro em versões cinematográficas de Dr. Jekyll and Mr. Hyde. March fez a versão de 1932, ao lado de Miriam Hopkins, dirigida por Rouben Mamoulian. Tracy fez a versão de 1941, dirigida por Victor Fleming e que tinha ainda no elenco – meu Deus do céu e também da terra – Ingrid Bergman e Lana Turner.
* Outra deliciosa lembrança do IMDb que não havia me ocorrido: este é um dos três filmes em que Stanley Kramer colocou atores consagradíssimos de musicais em papéis dramáticos. Exatamente como fez aqui com Gene Kelly, Kramer escalou Fred Astaire para interpretar um cientista inglês que está vivendo na Austrália em A Hora Final/On the Beach (1959). E deu a Judy Garland, já veterana, enfrentando sérios problemas de saúde, um belo papel em Julgamento em Nuremberg (1961).
* Este foi um dos quatro filmes de Stanley Kramer estrelados por Spencer Tracy. Os fizeram juntos também Julgamento em Nuremberg (1961), Deu a Louca no Mundo (1963) e Adivinhe Quem Vem Para Jantar (1967).

A peça foi refilmada três vezes mais tarde. Não há lei que proibia refilmagem
* A encenação original da peça Inherit the Wind na Broadway, que estreou em 21 de abril de 1955, foi um grande sucesso, com 806 apresentações no total. Venceu dois prêmios Tony, o Oscar do teatro americano. Os atores foram Paul Muni como Drummond, Ed Bagley como Brady e Tony Randall como Hornbeck. (Mais tarde, Melvyn Douglas substituiu Paul Muni, afastado por doença.) A peça teria duas novas encenações na Broadway, em 1996 e em 2007.
* Como não há lei proibindo que sejam feitas refilmagens, houve três refilmagens de Inherit the Wind. A primeira foi feita para a TV em 1965, com o elenco da Broadway: Melvyn Douglas como Drummond, Ed Begley como Brady. Uma outra veio em 1988, com Jason Robards como Drummond, Kirk Douglas como Brady. E ainda houve uma terceira, em 1999, com Jack Lemmon no papel de Drummond, George C. Scott no de Brady e Beau Bridges como Hornbeck.
* Depois do julgamento, o professor John Thomas Scopes, que na peça e no filme virou Bertram Cates, foi procurado por representantes da Universidade de Chicago, que ofereceram a ele uma bolsa de estudos. Scopes, então, estudou Geologia na prestigiosa universidade, e depois teve destacado trabalho como geólogo da empresa Gulf Oil na Venezuela.
* Eis os 14 atores que tiveram indicações aos Oscar de melhor ator ou atriz em papel principal ou como coadjuvantes: Tony Curtis, Sidney Poitier, Theodore Bikel, Cara Williams, Spencer Tracy, Maximilian Schell, Judy Garland, Montgomery Clift, Oskar Werner, Michael Dunn, Simone Signoret, Katharine Hepburn, Cecil Kellaway e Beah Richards. Katharine Hepburn e Maximiliam Schell levaram as estatuetas para casa – ela por Adivinhe Quem Vem para Jantar (1967) e ele por Julgamento em Nuremberg (1961).
* Ainda o Oscar: três dos filmes de Stanley Kramer tiveram indicações para os prêmios de melhor filme e melhor direção: Acorrentados/The Defiant Ones (1958), Julgamento em Nuremberg (1961) e Adivinhe Quem Vem para Jantar (1967). Um quarto, A Nau dos Insensatos/Ship of Fools, teve indicação para o Oscar de melhor filme.
Esta anotação está gigantesca demais, até mesmo para os meus padrões, e então não vou transcrever aqui longamente outras opiniões. Só registro rapidamente que Leonard Maltin deu ao filme apenas 3 estrelas em 4, mas chamou-o de “uma adaptação absorvente” da peça, “um tour de force de atuações”, sobre “tema que é real e ainda relevante”.
Roger Ebert o inclui na sua lista de “Great Movies”.
O CineBooks’ Motion Picture Guide dá a cotação máxima de 5 estrelas.
Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, que não mexe com essa coisa menor de dar cotações, diz que o filme é “um trabalho danado de cru, totalmente desprovido de sutileza”.

“Por que Deus nos deu a praga da capacidade de pensar?”
Entre os pontos em que a peça e o filme fogem da verdade dos fatos, o IMDb realça a personagem de Rachel Brown, a filha do reverendo Brown, namorada de Bertram Cates. A personagem – que tem grande importância dramática – é totalmente fictícia, invenção dos autores da peça.
Também não havia, segundo o IMDb, aquela grande oposição generalizada ao professor entre os moradores da pequena Dayton. Mas o filme mostra de fato que há gente que apóia o professor preso por ensinar o evolucionismo. Há o apoio aberto, claro, forte, de muitos dos próprios alunos de Cates, assim como há, durante o julgamento, o apoio do personagem Stebbins (Noah Beery Jr.) e do banqueiro da cidade.
O IMDb diz ainda que, na vida real, o julgamento de Scopes começou bastante chato, enfadonho, apesar da presença ali de dois homens nacionalmente famosos, um na defesa, outro na acusação. As coisas só pegaram fogo, na verdade, quando o advogado de defesa chamou o assistente da promotoria para depor.
Esse é de fato um dos pontos altos do filme. Depois que o juiz se recusa a ouvir como testemunhas quatro ou cinco cientistas, dizendo que aquilo não interessava, já que o que estava em discussão era a Bíblia, Henry Drummond-Spencer Tracy chama Matthew Brady-Fredric March para depor, já que ele é um expert na Bíblia.
É nesse momento, ao questionar o defensor do criacionismo sobre frases da Bíblia, que o advogado de defesa destrói inapelavelmente os argumentos, ou melhor, a falta de argumentos da acusação.
Dá vontade de transcrever praticamente todos os diálogos do filme – mas é impossível deixar de registrar ao menos este trecho aqui:
Brady: – “Não podemos abandonar a fé. A fé é a coisa mais importante!”
Drummond: – “Então por que Deus nos deu a praga da capacidade de pensar? Mr. Brady, por que o senhor nega a única faculdade do homem que o eleva perante as outras criaturas da Terra? O poder de seu cérebro de raciocinar. Que outros méritos nós temos? O elefante é maior; o cavalo é mais rápido e mais forte; a borboleta é muito mais bela; o mosquito é mais prolífico. Mesmo a simples esponja é mais durável. Mas uma esponja pensa?”
Brady: – “Não sei. Eu sou um homem, não uma esponja.”
Drummond: – “Mas você acha que uma esponja pensa?”
Brady: – “Se o Senhor quiser que uma esponja pense, ela pensa!”
Drummond: – “O senhor acha que um homem deveria ter os mesmos direitos de uma esponja?”
Brady: – “É claro!”
Drummond (apontando para o réu): – “Então este homem deseja ter os mesmos direitos de uma esponja! Ele deseja pensar!”

O problema não é a fé, nunca é – é o fanatismo
A perenidade desse Julgamento do Macaco, a perenidade da peça, tantas vezes reencenada e refilmada, seguramente se deve ao fato de que ela alerta – com força, com virulência, e com brilho – para o perigo representado pelo fundamentalismo.
Quando vi A Tentação/The Ledge (2011), um belo, sensível drama, escrevi:
“A ameaça do fundamentalismo cristão à vida em sociedade é uma preocupação presente entre muita gente boa nos Estados Unidos. Me lembro que minha sobrinha Valéria, que mora lá há anos, se apavora – como milhares e milhares e milhares de pessoas – com o intenso lobby dos fundamentalistas contra, só para dar um exemplo, o ensino do darwinismo nas escolas públicas. A ameaça do fundamentalismo cristão é grave, séria, perigosíssima – assim como a de qualquer outro fundamentalismo, seja muçulmano, seja comunista, seja fascista.”
E, sobre Criação/Creation (2009), um filme sobre uma época da vida de Charles Darwin, exatamente os anos em que ele escreveu A Origem das Espécies, anotei que eu, “que já fui cristão e depois ateu e depois agnóstico e hoje tenho cada vez menos certezas absolutas, entendo que essa guerra criacionistas x evolucionistas é sem sentido – como todas as guerras, aliás. Não consigo compreender que ciência e fé se excluam. Por que não aceitar a evolução, o big bang, e Deus antes de tudo isso que a ciência vai descobrindo e comprovando?”
Como mostra perfeitamente este filme maravilhoso, nas palavras de Henry Drummond, a Bíblia não é para ser entendida ao pé da letra. Os sete dias em que Deus fez o mundo não são apenas sete dias – até porque, lembra o advogado, o Sol só foi criado no quarto dia, e então como seria possível contar que tinha havido três dias?
A Bíblia é um conjunto de parábolas. Só os fanáticos podem acreditar que cada palavra do que diz a Bíblia é literal.
E aí voltamos à velha questão de sempre. O problema não é a fé – é o fanatismo.

O Boletim

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