20 de abril de 2024
Sergio Vaz

A França nos tranquiliza – e nos apavora

Foto: revista Nouvel Observateur **

Marine Le Pen não vai levar. Mas 42% para os extremos, isso assusta.
Já que todo mundo (ou, a rigor, quase absolutamente todo mundo) está fazendo exegeses sobre a política francesa e seus reflexos sobre o futuro do mundo, também vou me arriscar a dizer duas ou três coisas que sei sobre o primeiro turno da eleição presidencial deste domingo, 23 de abril.
Não houve, ao contrário do que há gente afirmando, um grande, fantástico, assustador crescimento da extrema direita.
Não houve também uma derrota fragorosa da esquerda. Ao contrário do que há gente proclamando, a esquerda não foi sepultada, enterrada, liquidada.
Sim, houve, como já se previa, como os analistas já vinham realçando, uma acachapante derrota das forças políticas tradicionais, tanto no campo da esquerda quanto no da direita.
Em um movimento que tem tudo a ver com o fenômeno do item logo acima, houve, sim, como já se previa, um aumento – assustador, apavorante – de votos nacionalistas, isolacionistas, anti-Europa, anti-integração, anti-união, antiglobalização. Muito dificilmente a extrema direita vai governar a França.
Justificar a primeira afirmação é a coisa mais fácil do mundo. No primeiro turno da eleição presidencial anterior a esta de agora, de 2012, Marine Le Pen, da direita radical, teve 17,90% dos votos. Agora, após cinco anos de ataques terroristas, de crescente sentimento anti-islamismo, de euroceticismo, de aumento do nacionalismo exacerbado da direita raivosa em diversos países europeus, Marine Le Pen teve 21,45%, com 97% das urnas apuradas oficialmente.
Não é um crescimento avassalador.
É preocupante, é apavorante? Sim, claro que é. Mas não é um crescimento avassalador, gigantesco, fenomenal.
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Justificar a segunda afirmação também não é difícil.
Não dá para falar que a esquerda foi varrida, destruída, acabada, extinta, quando o candidato de uma frente de esquerda radical, Jean-Luc Mélenchon, recebe 19,61% dos votos.
O que houve foi uma derrota acachapante da esquerda tradicional, representada pelo Partido Socialista. Benoît Hamon teve 6,34% dos votos no primeiro turno (com 97% da apuração concluída), o pior resultado obtido pelo Partido Socialista ao longo de toda a Quinta República, ou seja, desde 1958.
O esfarelamento do Partido Socialista Francês pode ser explicado por um grande conjunto de fatores, como a grande divisão interna, e não por um ou dois apenas. Mas é bom lembrar que François Hollande, o atual presidente, eleito pelo PS em 2012 com margem apertada sobre o então candidato à reeleição Nicolas Sarkozy, de centro-direita, teve a coragem de fazer uma reforma da Previdência – algo necessário em qualquer país do mundo, mas sempre violentamente impopular, que atrai os ódios de gente de todas as classes sociais ou credos políticos. Hollande acabou fazendo o governo mais impopular, com pior avaliação nas pesquisas de opinião, dezde 1958.
De qualquer forma, se fizermos a soma de 19,61% de votos de Jean-Luc Mélenchon da extrema esquerda mais os 6,34% do Partido Socialista dá 25,95%, mais do que Emmanuel Macron, o centrista independente que chegou em primeiro lugar, obteve.
Então, que não se venha com essa de que a esquerda acabou, foi varrida.
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A esquerda tradicional, ou a rigor centro-esquerda, representada pelo Partido Socialista, esta sofreu derrota acachapante – mas a direita tradicional não ficou em posição muito melhor.
A direita tradicional, antes representada pela UMP, o partido que elegeu Nicolas Sarkozy para o mandato iniciado em 2012, seguindo o longo período do também direitista Jacques Chirac, agora no partido chamado Os Republicanos (LR, na sigla em francês), também se deu mal. François Fillon, que começou a campanha como franco favorito, terminou o primeiro turno em terceiro lugar, com 19,84% dos votos (computados 97% do total).
Mais que o dobro do seu opositor natural, tradicional, do PS. Verdade. Só que o candidato do PS carregava o peso de representar o partido que esteve no poder nestes últimos anos todos, que fez uma reforma da Previdência absolutamente impopular, e que amargou os piores índices de rejeição dos últimos tempos.
Fillon surfava em cima da onda de ser o anti-Hollande. Saiu na frente, no alto – mas tropeçou na velhíssima questão ética, com a denúncia de ter favorecido mulher e filhos em empregos fantasmas. Dançou.
Dançaram os dois grandes partidos tradicionais que se alternaram no poder na França nos últimos 50 anos, o da esquerda tradicional e o da direita tradicional. Pela primeira vez em meio século, as duas grandes forças que dominaram a política francesa não estarão representadas no segundo turno, no dia 7 de maio.
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Os resultados deste primeiro turno da eleição presidencial no país que inventou a noção de esquerda e direita têm um lado um tanto tranquilizador – e um lado apavorante.
O lado tranquilizador é o de que os franceses evitaram o mal maior, que seria colocar no segundo turno a extrema direita e a extrema esquerda.
Poucas horas após o fechamento das urnas, os candidatos derrotados da direita tradicional e da esquerda tradicional, François Fillon e Benoît Hamon, já declaravam apoio a Emmanuel Macron, do novato En Marche.
É muito pouco provável, muitíssimo pouco provável que Marine Le Pen vença o segundo turno, daqui a duas semanas.
Candidato radical não atrai eleitores no segundo turno. Quem agrega votos no segundo turno é o candidato que se aproxima do centro – e Emmanuel Macron é exatamente isso. As primeiras pesquisas, realizadas no próprio domingo do primeiro turno, já falavam em 62% de intenção de voto em Macron contra 38% de Marine Le Pen.
O lado apavorante desse primeiro turno é que, somadas, as duas candidaturas radicais, a da fascista Marine Le Pen e a do esquerdista radical Jean-Luc Mélenchon, beiram absurdos, loucos, insanos 42% dos eleitores dispostos a dizer o que querem para o seu país.
Horror, horror, horror. O país do iluminismo, o país da liberté egalité fraternité tem quase a metade dos eleitores contra a liberdade básica de ir e vir, contra a igualidade de tratamento de todos os cidadãos, e contra qualquer noção de fraternidade.
N.A.: A foto do alto do post foi tirada do site da revista Nouvel Observateur, hoje Obs (http://tempsreel.nouvelobs.com/). A frase de Macron é mais ou menos assim: “Eu desejo ser o presidente (…) dos patriotas diante da ameaça dos nacionalistas”.

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