Guedes expôs a desfaçatez do governo e submeteu o país a mais um vexame internacional.
Jose Caldas/Brazil Photos/LightRocket/Getty Images
Defender-se acusando os críticos por danos idênticos ou piores dos que os seus é arma costumeira de quem não tem explicação para erros deliberados e escandalosos. Na política, o “todo mundo faz” é usual para amenizar delitos como caixa 2 ou a tal da “rachadinha”, apelido que ameniza a apropriação indébita de dinheiro público. Age-se como se o passado abonasse o crime presente e futuro.
Coube ao ministro Paulo Guedes internacionalizar esse perverso conceito. Na tentativa de se livrar das cobranças sobre a desastrosa política ambiental do governo Jair Bolsonaro no fórum promovido pelo Aspen Institute, disse entender a preocupação dos norte-americanos porque “eles desmataram suas florestas” e “mataram seus índios”. E implorou: “sejam mais amáveis como somos amáveis”.
Entre irritação e cinismo, Guedes expôs a desfaçatez do governo que integra. Pela sua perversa teoria, o mundo desenvolvido que cobra do Brasil a preservação da Amazônia e atenção aos povos indígenas não poderia fazê-lo porque, no passado, teria aniquilado florestas e nativos. Uma lógica que impediria, por exemplo, que o Brasil e outros países condenassem a escravidão por ter usado e abusado dela.
O que se quer com esse discurso? Licença para desmatar? Para dizimar índios?
No ano passado, Bolsonaro já havia desafiado europeus, com direito à gafe de trocar a Noruega pela Dinamarca ao divulgar nas suas redes sociais foto de caça de baleias. Tentativa vergonhosa de associar práticas ilegais ao país nórdico que, em retaliação ao desgoverno ambiental brasileiro, anunciara o corte do auxílio milionário ao Fundo Amazônico. Quanto ao desmate, a Europa é hoje o continente com os melhores índices de recuperação de suas matas, com 42% de cobertura florestal, boa parte resultado de mais de 50 anos de recomposição contínua.
Ao expor o país a mais um vexame internacional, Guedes o fez com requintes de crueldade para a já combalida imagem do Brasil lá fora. Um misto de reinvenção da história e mentira deslavada.
Os Estados Unidos desmataram florestas e mataram seus índios. Tentam replantar matas – hoje já refizeram cerca de 30% delas. Mas nunca conseguirão apagar da sua história o extermínio de 18 milhões de nativos.
A conta no Brasil é numericamente muito inferior, mas não menos grave: mais de 2,5 milhões de índios escravizados e mortos nos primeiros 100 anos após o desembarque de dos portugueses e outros quase 1 milhão entre 1900 e 1950. Como o Brasil prefere esconder essa catástrofe, Guedes se sentiu protegido para omiti-la.
Dados do IBGE apontam que a população indígena brasileira hoje gira em torno de 800 mil, quase metade deles aculturados. Com baixa imunidade, mais de 12 mil foram infectados e outros 240 morreram na pandemia.
Nem a tragédia da mortandade de índios nem a do desmatamento acelerado encontrarão guarita na história de governos anteriores e, muito menos, de outros países. Ou seja, além de absurdo, imoral e irresponsável, o discurso do ministro é inócuo, vazio. Só serve para aprofundar a vergonha nacional.
Não há qualquer hipótese de o governo Bolsonaro se safar da responsabilidade pelo desmatamento recorde, pela grilagem amazônica, pelas invasões de terras e apoio descarado e escancarado ao garimpo ilícito.
É patética a tentativa de defender o garimpo em terras demarcadas como direito e até reivindicação dos índios. A lavra a céu aberto, com maquinário pesado, poluindo rios e devastando a floresta, é proibida. Simples assim.
O governo quer mudar esses parâmetros. Como dificilmente conseguirá aprovar uma lei autorizando mineração em terras indígenas, estimula o liberou geral. Não à toa, os alertas de desmate amazônico atingiram números de calamidade, crescendo 34,5% nos últimos 12 meses. O resultado é Bolsonaro na veia – uma droga que faz o país retroceder décadas.
Diferentemente das canalhices políticas, como os vícios do “todo mundo faz” que acabam protegendo safadezas, a regressão na política ambiental pode não ter conserto.
Se confirmada, a rachadinha em favor do então deputado estadual e hoje senador Flávio, filho do presidente, pode ser punida, com ressarcimento aos cofres públicos e pena para os infratores. A floresta nativa abatida e incendiada para dar lugar a pasto e os veios de água poluídos pelos dejetos da mineração exigiriam esforços gigantescos para ser recompostos. Não raro, dão lugar a terrenos desérticos, imprestáveis. Mais: assim como os Estados Unidos não conseguirão jamais se purgar dos mortos do genocídio cometido contra os nativos, o Brasil não ressuscitará seus índios.
O STF parou parcialmente a política anti-indigenista de Bolsonaro. A pressão dos investidores internos e externos também tem funcionado. Mas é preciso marcação cerrada. Do contrário, não haverá desculpa capaz de impedir que os gravíssimos danos de hoje detonem o futuro.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 9/8/2020.
Jornalista, mineira de Belo Horizonte, ex-Rádio Itatiaia, Rádio Inconfidência, sucursais de O Globo e O Estado de S. Paulo em Brasília, Agência Estado em São Paulo. Foi assessora de Imprensa do governador Mario Covas durante toda a sua gestão, de 1995 a 2001. Assina há mais de 10 anos coluna política semanal no Blog do Noblat.
Jornalista, mineira de Belo Horizonte, ex-Rádio Itatiaia, Rádio Inconfidência, sucursais de O Globo e O Estado de S. Paulo em Brasília, Agência Estado em São Paulo. Foi assessora de Imprensa do governador Mario Covas durante toda a sua gestão, de 1995 a 2001. Assina há mais de 10 anos coluna política semanal no Blog do Noblat.
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