25 de abril de 2024
Colunistas Ligia Cruz

O tabuleiro asiático

O povo americano não está contente com Joe Biden. Com tão pouco tempo de governo, ele já se mostrou inábil para tomar decisões em momentos de pressão.

Foto: Google Imagens – Brasil de Fato

Para o mundo todo vai ficar a imagem do presidente que deu as costas para os jornalistas numa coletiva de imprensa quando lhe perguntaram sobre a saída apressada do Afeganistão. Um fiasco, falta de fair play. A imagem do seu país sofrendo abalos e ele fazendo muxoxo de desdém para perguntas desagradáveis.

Não tinha como ser diferente. Afinal, depois de liderar 20 anos de ocupação no país e gastar trilhões dos contribuintes para combater o terror, tudo voltou ao que era quando os talibãs governaram aquele até 2001.

Mas, para Biden, o objetivo foi cumprido. A caçada bem sucedida à Bin Laden, Al-Qaeda e aos wahabistas que o apoiavam chegaram ao fim. O povo afegão pôde enfim respirar sem a opressão dos fundamentalistas.

À época, as regiões dominadas pelas forças talibãs caíram uma a uma, durante os anos que se seguiram à morte do ideólogo do atentados às Torres gêmeas.

As conquistas sociais, o maior legado do povo local em duas décadas, em questão de dias, foram para o ralo. Voltar às garras dos radicais levou o país ao desespero.

Um verdadeiro êxodo começou e as tristes cenas do aeroporto, cercado pela turba desesperada, em meados de agosto, se repetiram por dias. Milhares de habitantes, especialmente da capital Cabul, que trabalharam para a frente intervencionista estrangeira, lutaram por vagas nos voos. Os afegãos conhecem bem a crueldade das punições empregadas pelos talibãs nos anos em que se mantiveram no poder. Não há piedade quando a morte é o livramento.

Nessa evacuação rápida as forças de coalizão garantem que todos foram resgatados. Contudo, do modo como as coisas ocorreram e pelas cenas mostradas pela mídia internacional, muita gente foi deixada para trás e deve estar escondida para tentar escapar pelas fronteiras. Os talibãs dizem que não haverá retaliação, nem supressão de direitos. Mas quem acredita?

Quando Donald Trump “negociou” com os talibãs a retirada de suas tropas do país, apenas cumpriu o desejo do povo americano de deixar de enterrar bilhões de dólares naquelas infindas cadeias montanhosas, junto com seus filhos. Todos acreditam que o terror foi eliminado para sempre. Mas não é o que parece.
Tão logo as forças de ocupação se retiraram todos os grupos fundamentalistas reavivaram e já estão disputando aquelas terras inexploradas, cheias de riquezas minerais, lítio, metais preciosos e outros. O governo de fato está sitiado.

Se os americanos prolongaram seu custoso tempo por lá, junto com os demais, por quê sair justo num momento em que o terror retorna? Falta de inteligência de guerra? Está mais para um esculacho geral.

O comando das tropas estadunidenses claramente vacilou e deixou um verdadeiro arsenal de guerra nas mãos dos inimigos. E o que fizeram os outros países da colisão, como Alemanha, França, Reino Unido, para citar os principais? A mesma coisa.

Essa decisão em bloco pode custar caro daqui um tempo porque os talibãs, a Al-Qaeda e o estado islâmico estão ativos e continuarão suas guerras contra os infiéis.

Mas não é só isso. A saída apressada dos Estados Unidos descobriu um flanco do tabuleiro geopolítico da Ásia Central, disputado com avidez por China e Rússia.

A China quer reativar os áureos tempos das rotas da seda, construindo uma ligação marítima do Oceano Pacífico à Xinjiang, noroeste do país, através do Paquistão, seu parceiro comercial.

A iniciativa ousada inclui obras de infraestrutura no porto paquistanês de águas profundas de Gwadar, estradas, ferrovia e oleoduto. O Afeganistão, por ser um país central, sem saída para o mar, também pode se beneficiar, colocando-se como mais uma opção para se chegar a Gwadar.

A malha viária da rota marítima da seda do século XXI está sendo realizada e custeada pela China, com um investimento que pode chegar a 60 bilhões de dólares. A possibilidade de atracar navios de grande porte em Gwadar e utilizar outros modais para transportar suas cargas por terra permite ao governo chinês, economizar tempo e dinheiro, eliminando a dependência que tem de fazer toda sua movimentação, através canal de Malaca, na Malásia, a principal ligação entre os oceanos Índico e Pacífico.

Com uma logística de transporte mais curta, a economia resultante será reinvestida na própria região. Há intenção da China de explorar as reservas minerais do Afeganistão, país onde está tudo por fazer. Por essa razão, os talibãs não devem se opor a investimentos estrangeiros. Economicamente mais forte, o governo afegão, seja quem for, ganha poder de barganha e aliados fortes.

Bilhões e bilhões de dólares serão gastos pela China, mas Xi Jinping raciocina a longo prazo e está cumprindo o curso de um megalomaníaco projeto de controle da economia mundial. The big one não assusta. Ainda mais com Joe Biden, que demonstra um governo fraco e sem ardil.

Por outro lado, com os outros peões no jogo, a Rússia de Putin tenta avançar casas, fechando o cerco nas repúblicas afins, nas fronteiras ao sul, com a China, Cazaquistão, Turcomenistão, Quirguistão, Uzbequistão, Tadjiquistão, Afeganistão e Paquistão. Não interessa uma guerra naquele miolo de mundo com divergências multiétnicas ancestrais.

As guerras travadas no passado, principalmente com o Afeganistão, gerou traumas profundos e muita desconfiança. Mas um apelo das forças de resistência que estão se mobilizando na região do Panjshir, no sul afegão, pode mudar as coisas. Resta saber se o vice-presidente afegão, que reivindica o governo do país, Amrulla Saleh, e o filho do herói nacional, Ahmad Massoud, de mesmo nome, que lidera o grupo antitalibã, aceitaria ajuda justamente daqueles que seu pai combateu. Por hora, só o Tadjiquistão apoia a resistência.

Não há aceno por parte de Vladimir Putin, que está tateando no território com muito cuidado, com os olhos voltados para China e atento ao arsenal que os americanos deixaram para trás.

Ligia Maria Cruz

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

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