29 de março de 2024
Fernando Gabeira

No fio da navalha


O Espírito Santo já teve mais presença na mídia nacional. No passado havia correspondentes como Rogério Medeiros, do Jornal do Brasil, que fez inúmeras reportagens sobre a histórica devastação da Mata Atlântica no Espírito Santo. E revelou grandes personagens, como Augusto Ruschi, o homem que amava o beija-flor, e o lendário desmatador Rainor Greco, que depois de devastar a Mata Atlântica levou seu know-how para a Amazônia.
No fim de semana as notícias sobre a greve da Polícia Militar (PM) me inquietaram. Na segunda-feira, no rádio, avaliei que esse poderia ser o tema mais importante da semana. Anexei uma preocupação: o fechamento das escolas e dos postos de vacinação. Acabara de voltar do Espírito Santo, onde a morte dos macacos se ampliava e os primeiros casos de febre amarela já se registravam na zona rural de Colatina. O Espírito Santo, dos Estados limítrofes de Minas Gerais, é o mais vulnerável à febre amarela, por ter menos gente vacinada.
Mas a onda de violência tornou-se algo mais assustador do que a febre amarela. Assassinatos, saques, assaltos, tiroteio, tudo isso nos relembra de como é tênue o limite para a barbárie, como é delicado o equilíbrio em que nos movemos no Brasil, inclusive com nosso mundo político vivendo em outro planeta.
Sempre defendi a ideia de que se investisse em segurança, reconhecendo como é caro esse esforço, mesmo com algumas reduções de custos que o uso da tecnologia possa trazer. A ideia é ter uma polícia bem treinada, bem paga e respeitada pela sociedade. Até mesmo reverenciada quando um policial morre em confronto com criminosos, algo que os movimentos de direitos humanos ainda não interiorizaram.
A greve da Polícia Militar (PM) capixaba não foi a primeira. Uso a palavra greve porque a encenação das famílias na porta dos quartéis era apenas para construir uma realidade alternativa, como está em moda atualmente. Houve greves em Pernambuco e na Bahia e a cada vez que elas ocorrem enfraquecem os argumentos dos que gostariam de vê-los em melhor situação.
Todo policial militar, mesmo que não conheça a Constituição no seu todo, é ensinado, ao ser admitido, sobre o que ela proíbe que ele faça. O caos que o movimento dos policiais provocou no Espírito Santo é tão grave que, em circunstâncias menos dramáticas que aquelas em que vivemos, valeria considerá-los desertores e construir uma nova Polícia Militar.
Um dos efeitos negativos é a propagação. Em Minas Gerais, já se anunciou na noite de terça-feira o boato de uma greve de PMs e bombeiros. Se vingar, já é uma novidade não só inquietante, mas desapontadora: os bombeiros são muito bem vistos pelo povo.
No Rio de Janeiro, os PMs estão em luta contra o governo Pezão, que é um remanescente do grupo que assaltou e quebrou o Estado. Nesse sentido, têm todo o respeito. Mas uma coisa é lutar contra o governo e outra, contra a sociedade, desrespeitando a Constituição e expondo as cidades à barbárie.
No Espírito Santo, um plano de austeridade econômica equilibrou as contas, mas não teve a sensibilidade política que um planejamento desse tipo precisa ter. Os PMs estão há quase quatro anos sem reajuste salarial. E ali sua tarefa não é fácil. A quantidade de bandidos que tomou as ruas é uma evidência da aspereza da missão.
No Rio de Janeiro o problema também é muito sério. O famoso resgate econômico do governo federal está fazendo água, com negativas da Caixa Econômica, do Banco do Brasil e da Advocacia-Geral da União. Falta também aprová-lo na Assembleia Legislativa.
Há uma possibilidade de o governo não resistir à crise. Mas aí coloco a segunda questão: uma simples troca de governo aquietaria os protestos?
Num cenário tão confuso, em todas as áreas, em que as PMs estão prestes a cruzar os braços, uma saída para a sociedade é a autodefesa. Não me refiro a armas, mas a smartphones. Já começam a surgir aplicativos mapeando tiroteios, indicando zonas perigosas. O próprio Exército, que tem sido uma espécie de último recurso, talvez possa avançar nesse caminho. Uma coisa é patrulhar uma cidade, outra é patrulhar conectado por milhares de cidadãos também preocupados com a segurança. Os movimentos tornam-se mais econômicos e precisos.
Da mesma forma, como no combate ao terrorismo na Europa, as autoridades podem informar as pessoas por seus celulares, estabelecer um novo patamar de segurança por meio da comunicação.
Se os acontecimentos do Espírito Santo ganharem maior dimensão, o caminho da autodefesa é inevitável. Com a superação mais aguda da crise, a experiência de se autodefender por meio da comunicação será muito importante. Ela contribui para economizar custos num momento em que é preciso, mais do que nunca, investir na segurança, mas, lamentavelmente, estamos falidos.
Na verdade, eu nem iria escrever sobre isso. O tema original eram as primeiras semanas de Donald Trump e os limites que a democracia americana está impondo a ele. O que houve no Espírito Santo reviveu um certo instinto, um faro, de que estamos mais perto do caos do que imaginamos.
Os acontecimentos têm sido muito surpreendentes e nos arrastam como uma enxurrada de verão. Mas nunca resolvi a dúvida: os acontecimentos são mesmo tão surpreendentes ou o que mudou foi a nossa capacidade de prever?
Num país onde isso tudo acontece e o ministro da Justiça pede demissão para se preparar para uma sabatina no Senado, realmente, vivemos em múltiplas realidades paralelas.
Recebi uma mensagem assim: “momento estranho que vivemos aqui e no mundo”. Respondi: “é preciso recuperar a racionalidade, não completamente, porque um pouco de loucura sempre tem o seu lugar”.
Nos últimos tempos, as proporções estão invertidas: a balança pendeu para a loucura.
Artigo publicado no Estadão em 10/02/2017
Fonte: Blog do Gabeira

Fernando Gabeira

Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.

Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.

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