O Facebook jogou Bolsonaro no mar com sua rede de 88 contas.
Ele é o primeiro presidente gestado no mundo virtual. Isso explica muito sua ascensão. Mas explica também as redes sociais.
O Facebook foi pressionado pelos anunciantes. A rede pode se desfazer dos discursos de ódio mais grosseiros. É difícil manter as pessoas presas na coleira eletrônica só para consultar os “likes”, numa incessante busca de reconhecimento.
A verdade, além de ser em certos momentos tediosa, propaga-se muito lentamente. Mark Twain disse: “Uma mentira pode dar a volta ao mundo enquanto a verdade leva o mesmo tempo para calçar os sapatos.” Esta citação está no livro “Os engenheiros do caos”, de Giuliano da Empoli. Ele disseca as eleições influenciadas por algoritmos, medo, fake news e teorias da conspiração.
Bolsonaro está na lista. Embora o autor não o compare com os outros, é possível dizer que é menos sofisticado do que o Movimento 5 Estrelas, na Itália, que é controlado diretamente por uma empresa digital, que detém inclusive as senhas dos candidatos eleitos.
Da mesma forma, Bolsonaro não teve os recursos do grupo que conduziu a campanha do Brexit e mergulhou num oceano de informações, produzindo com elas milhões de mensagens pessoais, de acordo com as tendências do destinatário. O Brexit protege a caça para o caçador, defende os animais para o ecologista.
Bolsonaro é apenas um avatar dessa arquitetura caótica. Como os outros, aspira a uma democracia direta, investe contra um sistema, mergulha em todos os temas que possam gerar barulho e rancor, mente e desmente com facilidade e orgulha-se de suas gafes que o identificam com o homem comum.
Poderia escrever muito sobre como se elegeu e como era quase impossível para a política tradicional neutralizá-lo. Ele transitava num universo especial que muitos ignorávamos, ou simplesmente rejeitávamos.
Mas o tempo e o espaço são curtos para descrever a gênese. O importante é saber como nos desfazemos dele. A proposta de uma frente democrática é apenas um verniz institucional. Funciona para acalmar as forças tradicionais, relevando o passado e olhando para a frente.
Mas a verdadeira batalha para combater Bolsonaro tem de ser travada no universo em que ele venceu, com atores e a lógica do mundo digital. Isso significa usar fake news, teorias conspiratórias ou disseminar o ódio? Certamente não. Mas não será fazendo tediosos comícios eletrônicos que vamos romper a barreira. Será necessário usar a criatividade, a irreverência e a alegria, novas formas mais compatíveis com esse mundo revolucionado pela internet.
O livro de Da Empoli conclui sua análise com um trecho do discurso de John Maynard Keynes, após a Primeira Guerra, endereçado a jovens liberais na sua summer school: “Quase toda a sabedoria dos nossos homens de Estado foi erigida sobre pressupostos que eram verdadeiros numa época, ou parcialmente verdadeiros, e que o são cada dia menos. Nós devemos inventar uma sabedoria para uma nova época. E, ao mesmo tempo, se queremos reconstruir algo de bom, vamos precisar parecer heréticos, inoportunos e desobedientes aos olhos dos que nos precederam.”
O autor de “Os engenheiros do caos” afirma que vivemos uma política quântica em que a realidade objetiva não existe. Cada coisa se define provisoriamente em relação a outra coisa, cada observador determina sua própria realidade.
Discordo parcialmente. O exemplo que ele usa como típico da época não me é estranho. É uma frase de Zuckerberg: se nos interessamos pelo esquilo agarrado na árvore mais do que pela fome na África, o algoritmo dará um jeito de nos bombardear com a história de roedores do bairro e eliminar o que se passa do outro lado do mundo.
Aos 18 anos, foi a minha primeira lição de jornalismo no livro de Fraser Bond: “Se morre um cão na nossa rua, isso é mais importante que um terremoto na China.”
Pois bem: comeram um morcego por lá no final de 2019, e o mundo está virado. Ainda há necessidade de conectar o discurso coletivo com o maior número de bolhas.
Segundo Da Empoli, na política quântica não tem mais valor essa frase de Daniel Patrick Moynihan: “Cada um tem direito às próprias opiniões, mas não não aos seus próprios fatos.”
Pelo menos alguns fatos deveriam ser propriedade coletiva, para tornar possível a sobrevivência no caos.
Artigo publicado no jornal O Globo em 13/07/2020
Fonte: Blog do Gabeira