A relação entre o jornalismo profissional e o poder é crispada desde sua origem e assim será
FÚRIA - Na live transmitida da Arábia Saudita: críticas pesadas à imprensa por associar seu nome
ao caso Marielle e acusação contra o governador Witzel // Reprodução
Editorial de O Estado de S. Paulo (26/12/2019)
Coragem é atributo inerente à profissão de jornalista. Seguramente, um dos mais importantes deste nobre ofício, ao menos para os que abraçam com paixão, ética e responsabilidade a missão de levar ao conhecimento de seus concidadãos informações que interesses de toda sorte prefeririam manter ao abrigo da luz.
A esta altura, já está mais do que claro que a coragem que distingue jornalistas profissionais de bajuladores do poder é qualidade mal vista pelo presidente da República. Jair Bolsonaro não é o primeiro mandatário a demonstrar desconforto com a audácia da imprensa em reportar fatos de interesse público, ainda que inconvenientes para os poderosos de turno. Não há de ser o último, tampouco. A relação entre o jornalismo profissional e o poder é crispada desde sua origem e assim será, pois o jornalismo que melhor serve à sociedade é o que traz contrapontos.
Com frequência, uma vez contrariado, Jair Bolsonaro explode. Há poucos dias, o País o viu faltar com o decoro ao insultar jornalistas e seus familiares à saída do Palácio da Alvorada, onde costuma dar declarações à imprensa, quando questionado sobre a investigação a respeito das estranhas relações entre seu primogênito, o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), e o ex-assessor deste na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Fabrício Queiroz. Até para o chocante padrão de grosserias revelado à Nação por Jair Bolsonaro e alguns de seus assessores mais próximos ao longo deste ano, o presidente conseguiu rebaixar ainda mais a institucionalidade que é esperada da Presidência da República (ver editorial Falta de decoro, publicado em 21/12/2019).
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O triste episódio suscitou reflexão sobre a pertinência de a imprensa profissional continuar cobrindo a saída do presidente da República de sua residência oficial, no que seria um arremedo de entrevista coletiva em que Jair Bolsonaro, quando descontente com a natureza de alguma pergunta que lhe é dirigida, responde com ataques furibundos ao jornalista que a formulou.
A pertinência é evidente. É papel da imprensa cobrir o dia a dia da autoridade máxima do País. E se o presidente da República não está familiarizado com o papel da imprensa em uma democracia, é o presidente que precisa se educar, não a imprensa se retrair.
O País não saberia como pensa, como age e como se comporta o chefe do Poder Executivo não fosse o abnegado trabalho de jornalistas profissionais que, dia sim e outro também, se postam à saída do referido palácio para trazer à luz fatos como o indecoroso comportamento do presidente no dia 20 passado. É graças ao trabalho desses jornalistas, que se põem a questionar Jair Bolsonaro, sujeitando-se às suas diatribes e ofensas – e não só às dele, mas às da claque que cerca o presidente nessas ocasiões –, que é dado ao País conhecer melhor quem orienta seus destinos.
Na manhã de sábado, 21, Jair Bolsonaro convidou alguns jornalistas ao Palácio da Alvorada, entre os quais um repórter do Estado, para fazer uma espécie de mea culpa de seu comportamento no dia anterior. “Sim, eu erro. Não deveria ter falado (que um jornalista, a seu ver, tinha ‘cara de homossexual terrível’)”. O presidente acrescentou que o seu linguajar “é diferente do de outros presidentes”, mas que, ao fim e ao cabo, o que importa são “os resultados que ele traz para o País”.
É inapropriado reduzir o mau comportamento do presidente Jair Bolsonaro a mera questão de linguajar malposto, em que pese o fato de suas falas, de fato, ultrapassarem em muito os decibéis ajustados ao bom exercício da Presidência da República. A questão de fundo é que a linguagem de Jair Bolsonaro, “tosca”, segundo sua própria qualificação, equivale à emersão de visões que o presidente tem das instituições democráticas, entre elas a imprensa e a liberdade de expressão.
Familiares, amigos, ministros de Estado e outros assessores que privam do contato diário com Jair Bolsonaro podem, cada um a seu jeito, eventualmente ajudá-lo a aprimorar suas formas de expressão. Problema mais premente a ser resolvido é a reformulação de ideias perniciosas que jazem sob palavras duras.
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