28 de março de 2024
Colunistas Sergio Vaz

Brumas / Moontide

De: Archie Mayo, EUA, 1942

Nota: ★☆☆☆

Como muito bem diz a sabedoria popular, nem tudo que reluz é ouro. Ou, como já escrevi ao menos uma vez aqui, nem tudo que tem grandes nomes e é da época de ouro de Hollywood presta. Este Moontide, no Brasil Brumas, de 1942, que tem duas figuras maravilhosas, fortes, icônicas – Jean Gabin e Ida Lupino – é uma perfeita prova disso.

Naturalmente, é um prazer ver o grande Jean Gabin em um dos seus dois únicos filmes da fase hollywoodiana – como tantos outros atores, diretores, roteiristas europeus, ele se refugiou nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, para escapar das garras do nazismo.

Ele está bem no papel central do fortíssimo, poderoso Bobo, um misto de marinheiro e aventureiro francês que foi parar na Califórnia, faz trabalhos diversos e esparsos, bebe o tipo de álcool que passar pela frente em quantidades industriais e preza sobretudo sua liberdade, sua independência, o fato de não ter raízes, lar – até conhecer Anna, uma mulher linda e perdida na vida, por quem se apaixona perdidamente.

Ana é o papel da inglesa Ida Lupino, fantasticamente bela aos 24 aninhos de idade, jovem demais, mas já tendo mostrado seu talento e a força de sua imagem em A Luz Que Se Apaga (1939), O Lobo do Mar (1941) e Seu Último Refúgio (1941).

E a verdade é que pessoas que gostam de filmes, e têm respeito pelos filmes dos anos 30 a 60, podem perfeitamente gostar de ver este Brumas só pela alegria de estar diante de Jean Gabin e Ida Lupino.

E há ainda a interessante característica de que se focaliza um ambiente de pobreza, sem glamour, sem charme – a vida de trabalhadores sem qualificação junto do porto de uma pequena cidade californiana, San Pablo.

Depois de tanta comédia e musical dos anos 1930 – aqueles filmes em que gente rica muitíssimo bem vestida entra e sai de boates elegantes o tempo todo, para ajudar as platéias a escaparem, por uma hora e meia, das agruras da Grande Depressão –, eram muito bem-vindos pela crítica e pelos cinéfilos mais exigentes as obras “realistas”, que mostravam a vida das classes trabalhadoras, de gente pobre, de vida dura. E como houve filmes “realistas” no finalzinho dos anos 30, início dos 40 – basta lembrar de Vinhas da Ira/Grapes of Wrath (1940), que o mestre dos mestres John Ford fez com base no romance de John Steinbeck, um escritor que não escondia suas simpatias pelo socialismo.

Mas a verdade é que Brumas é um filme fraco, fraquinho – e esta não é apenas minha opinião, que não vale mais que uma moeda de 3 guaranis paraguaios furada. É, parece, a opinião um tanto generalizada. Volto a essa questão das avaliações sobre o filme mais tarde.

Uma história fraquinha, situações inverossímeis

O maior problema, me parece, é o roteiro. Há muita coisa que parece um tanto de graça, um tanto inverossímil, um tanto forçada. Nada natural, nada plausível, nada próximo da vida.

O roteiro é de John O’Hara (1905-1970), um prolífico escritor, autor de uma dezena de romances que foram transformados em filmes, como Meus Dois Carinhos/Pal Joey (1957), Paixões Desenfreadas/From the Terrace (1960) e Disque Butterfield 8 (1960). Consta que o excelente roteirista Nunnally Johnson colaborou com o roteiro, embora seu nome não seja creditado.

A base do roteiro é uma peça de teatro de autoria de Willard Robertson, Moon Tide, lançado em 1940. Esse Willard Robertson (1886-1948), por sua vez, foi um ator que apareceu em nada menos que 147 filmes, e também escreveu diversas peças de teatro.

Não dá para saber se é a peça de Willard Robertson é que ruim, ou se foi a adaptação dela para o cinema por John O’Hara que a piorou, mas o fato é que é uma história fraquinha.

Bobo, o marinheiro, tem uma relação estranha com um amigo de infância, Tiny (o papel do bom Thomas Mitchell), uma figura igualmente estranha. Quando bem jovem, Bobo tinha, num momento de irritação, espremido o pescoço de um garoto da vizinhança até quase sufocá-lo. Esse Tiny passou, a partir daí, a ameaçar Bobo de revelar o quase assassinato – e, para guardar segredo, exigia que Bobo lhe pagasse uma espécie de pensão.

Por que razão Bobo, fortão, imenso, poderoso, se deixou chantagear a vida inteira por esse Tiny é um daqueles grandes mistérios da vida.

Pois bem. Na noite de domingo em que começa a ação, Bobo enche a cara. Passa a noite inteira enchendo a cara. Toma mais uísque – e depois saquê, oferecido por um tal Takeo que aparece do nada (o papel de Victor Sen Yung) – do que todos os irlandeses de Depois do Vendaval/The Quiet Man tomam, durante toda a maravilha de filme de John Ford. Tiny fica falando no ouvido dele que apareceu um belo trabalho para ele fazer. Uma das pessoas que vemos que estava no bar juntamente com Bobo e Tiny se chama Pop Kelly (Arthur Aylesworth), um velhinho mal humorado.

Na manhã seguinte, Bobo acorda numa ressaca filha da mãe numa barcaça ancorada junto de um molhe no porto. Quando está tentando entender o que faz naquela barcaça em que há uma placa dizendo “Vendem-se iscas vivas”, aparece Takeo, o que havia surgido do nada no meio da noite. Takeo havia contratado Bobo para trabalhar ali na barcaça, por 1 dólar e 1 litro de saquê por dia – só que Bobo não se lembrava absolutamente de nada. Takeo conta também que alguém havia estrangulado Pop Kelly – e então Bobo entra em pânico: teria sido ele que cometera o crime?

Anna tenta se matar. Depois fica toda alegrinha

Também do nada surge um novo personagem, Nutsy (interpretado por Claude Rains, que, no mesmo ano, faria o capitão Renault, o francês corrupto, conivente com o nazismo de Casablanca, o clássico dos clássicos). Esse Nutsy, que se diz guarda noturno, de repente vira o maior amigo de Bobo.

E, numa noite, Bobo e Nutsy estão caminhando junto da praia quando um grupo de pessoas pede socorro: uma mulher, toda vestida, estava entrando no mar, obviamente numa tentativa de suicídio. Bobo-Jean Gabin tira agasalho e camisa, mostra o torso fortão, entra no mar e salva a moça.

A moça é Anna, o papel de Ida Lupino.

Bobo leva Anna quase desfalecida para a barcaça de Takeo, que tem um quartinho, coloca-a na cama e dorme no chão, depois de ouvir a quase suicida dizer para ele deixá-la em paz.

Na manhã seguinte, depois de dizer mais uma vez que quer ficar em paz, Anna muda de idéia, de disposição, limpa e arruma o quartinho, deixa-o absolutamente imaculado.

Por que ela tentou se matar e por que ela de repente acordou de bem com a vida são outros daqueles mistérios deste mundo de mistérios e deste filme de trama troncha.

Apaixonam-se perdidamente – mas isso quando o filme está chegando à sua metade. Ainda haverá muita água para passar sob a ponte, muita água a bater no molhe junto do qual está ancorada a barcaça que os dois pombinhos arrumam com o maior capricho.

Fritz Lang abandonou o projeto

Consta que outro europeu – além do francês Gabin e da inglesa Ida – esteve envolvido com o filme: o alemão Fritz Lang foi contratado para dirigir. Não consegui saber o motivo, mas o fato é que Lang largou o projeto bem no início das filmagens, e foi substituído pelo nova-iorquino Archie Mayo. Archie Mayo (1891-1968) dirigiu 89 filmes, entre eles o ótimo drama A Floresta Petrificada (1936), que reuniu o ainda não muito famoso Humphrey Bogart a Bette Davis e Leslie Howard, e a gostosa, safada e subversiva comédia Noite Após Noite (1932), com Mae West.

Achei que o livro The Films of 20th Century Fox pudesse esclarecer por que Fritz Lang não fez o filme, mas o verbete sobre Moontide não toca no assunto. Diz o seguinte: “Um melodrama à beira-mar, cheio de clima, com Jean Gabin no seu primeiro filme americano, como um marinheiro duro e itinerante de temperamento difícil, que acorda de ressaca e fica imaginando se ele foi responsável por um assassinato. Um amigo perigoso (Thomas Mitchell) estica a corda, mirando a possibilidade de ser ajudado pelo outro, mas o marinheiro encontra a felicidade quando salva uma garota (Ida Lupino) do suicídio e é recompensado com o amor. O filme bem sombrio se torna interessante pela presença macha de Gabin.”

É uma avaliação bem próxima à feita por Leonard Maltin, que deu ao filme 2.5 estrelas em 4: “O retrato feito por Jean Gabin de um duro marinheiro que se interessa por uma potencial suicida (Lupino) salva esse mediano filme ‘realista’.”

“Realista.” Olha aí a definição…

O Guide des Films de Jean Tulard faz sobre La Péniche de l’Amour (este foi o título na França, a barcaça do amor) um verbete mais longo que o normal, colocando um pouco do contexto. Eis o que ele diz, após o primeiro parágrafo em que faz uma sinopse da trama:

“Iniciado por Fritz Lang, que se retirou ao fim de quatro dias, este filme foi rapidamente esquecido. É no entanto o primeiro filme de Gabin nos Estados Unidos. Recusando-se a trabalhar sob Pétain (o marechal que chefiava o governo títere, sabujo dos nazistas, na França ocupada), Gabin foi para Hollywood, aprendeu o inglês e seduziu Marlene Dietrich. Mark Hellinger, o produtor, o contratou para o filme Moontide. Ele americanizou Gabin, conservando o personagem: aqui um homem das docas de origem francesa fadado à fatalidade do mal, fatalidade da qual no entanto ele escapará (ao inverso do que aconteceu sob a direção de Carné), happy end ao molho hollywoodiano. ‘Alguns cenários quase simbólicos, luzes entre a bruma e o raiar do dia, o cintilar da água sob a lua, o casamento no pontão ciando uma atmosfera poética em torno do casal Gabin-Lupino’ (Jacques Siclier). No seu lançamento na França, Moontide não teve sucesso e desapareceu bem depressa.”

La Péniche de l’Amour. A Barcaça do Amor. Bom título. Em Portugal, os exibidores fizeram a tradução literal de Moontide: lá o filme se chamou Maré Cheia. O título escolhido pelos exibidores brasileiros, Brumas, não é nada mal, de forma alguma. Há brumas, nevoeiro, em vários momentos do filme – e havia uma remissão a Quai des Brumes, Cais das Sombras no Brasil, o filme de grande sucesso de 1938 dirigido por Marcel Carné em que Jean Gabin interpreta um militar desertor que encontra o amor em uma cidade portuária cheia de brumas.

Gabin era um grande herói para os franceses

“Gabin foi para Hollywood, aprendeu inglês e seduziu Marlene Dietrich.”

Jean Tulard fala de Gabin como se falasse de um grande herói – e é o que Gabin é para os cinéfilos franceses. Um herói. Tanto que, depois de apenas um segundo filme em Hollywood, O Impostor (1944), dirigido por seu conterrâneo Julien Duvivier, que já o havia dirigido em O Demônio da Argélia/Pépé Le Moko (1937), Gabin foi servir sob o comando do general Charles de Gaulle nas forças francesas livres que lutaram com os aliados contra os nazistas. Ganhou a Cruz da Guerra por sua participação nas batalhas do Norte da África e, depois do desembarque dos aliados na Normandia, fez parte da tropa que entrou na Paris liberada, em 1944.

Em 1946, o primeiro ano após o fim da guerra, estrelou ao lado de Marlene Dietrich Martin Roumagnac – Mulher Perversa, o único filme que os dois amantes lendários fizeram juntos.

“Gabin era o homem – o super-homem, o ‘homem para a vida’. Era o ideal que todas as mulheres procuram. Nada nele era falso. Tudo era claro e transparente. Era bom, suplantava aqueles que, em vão, tentavam imitá-lo.”

Marlene Dietrich se deslumbra assim em sua deliciosa autobiografia, lançada no Brasil pela Francisco Alves, com tradução de Reinaldo Mestrinel. Ela conta que os dois se conheceram na América, em Hollywood, para onde se mudaram quando o nazismo começou a espalhar suas patas pela Europa. Ela ensinou inglês para ele, cozinhou para ele. “Tomava conta de seus contratos e de sua casa. (…) Lutávamos juntos, de mãos dadas. Gabin fazia filmes, cumpria seus contratos e decidiu aderir às Forces Françaises Libres. Queria lutar. Entendia muito bem essa vontade. Eu era sua mãe, sua irmã, sua amiga – e muito mais.”

Seguramente muito mais. Sem dúvida alguma muito mais.

E então, para encerrar o texto sobre este filme fraquinho, que foi rapidamente esquecido, mas tem a presença magnética e magnífica de Ida Lupino e Jean Gabin, lá vai um trecho de uma resenha feita por um leitor do IMDb que se assina ZenVortex:

“Este filme de 1941 interessante e supreendentemente efetivo foi um dos primeiros filmes noir. Parcialmente dirigido por Fritz Lang – que desistiu depois de umas poucas semanas devido ao conflito com Jean Gabin, que estava tendo um romance com a ex-namorada de Lang, Marlene Dietrich –, e apresentando um elenco internacional com contribuição artística de Salvador Dali, o filme é um trabalho seminal que ajudou a estabelecer alguns dos elementos estilísticos do filme noir clássico.”

Sim, há quem diga que Brumas tem a ver com os filmes noir. Eu não vejo absolutamente nada de noir no filme, mas tudo bem. Agora, as referências à contribuição artística de Salvador Dali ao filme, e a menção a um namoro entre Fritz Lang e Marlene Dietrich, não sei de onde esse ZenVortex tirou. Podem até ser verdadeiras – as duas coisas. Dalí de fato colaborou com Alfred Hitchcock em Quando Fala o Coração/Spellbound, de 1945, apenas 3 anos pós este Brumas. E Marlene Dietrich… Bem, ela namorava todo mundo, então pode perfeitamente ter namorado também Fritz Lang.

Anotação em julho de 2019

Brumas/Moontide

De Archie Mayo, EUA, 1942

Com Jean Gabin (Bobo), Ida Lupino (Anna), Thomas Mitchell (Tiny), Claude Rains (Nutsy)

e Jerome Cowan (Dr. Brothers), Helene Reynolds (a mulher no barco do doutor), Ralph Byrd (reverendo Price), William Halligan (o barman), Victor Sen Yung (Takeo), Chester Gan (Hirota), Robin Raymond (Mildred), Arthur Aylesworth (Pop Kelly), Arthur Hohl (Jennings, o funcionário do hotel), John Kelly (Mac), Ralph Dunn (policial), Tully Marshall (Mr. Simpson), Tom Dugan (garçom), Vera Lewis (Mrs. Simpson)

Roteiro John O’Hara

Baseado no romance de Willard Robertson

Fotografia Charles Clarke e Lucien Ballard

Música David Buttolph, Cyril J. Mockridge

Montagem William H. Reynolds

Produção Mark Hellinger, 20th Century Fox.

P&B, 94 min

Título na França: La Péniche de l’Amour. Em Portugal: Maré Cheia.

O Boletim

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