17 de abril de 2024
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Brumadinho prova que no Brasil o raio cai no mesmo lugar

An aerial view shows the area of a collapsed dam in Brumadinho, Brazil, Saturday, Jan. 26, 2019. Rescuers searched for survivors in a huge area in southeastern Brazil buried by mud from the collapse of dam holding back mine waste, with several people dead and hundreds missing.
                                                                                                             (AP Photo/Andre Penner)

O Brasil é um país do tipo tão ponto fora da curva que absolutamente nenhuma, nenhuma teoria nos é aplicável. Nenhuma teoria nos define. Nem as científicas, nem as anedóticas, nem as conspiratórias. Funcionamos, ou não funcionamos, por acidente, por tentativa e erro, por surtos, golfadas, golpes de sorte, de azar, jatos de vômito. Vejamos a tese do senso comum segundo a qual um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Onde um raio não cai duas vezes no mesmo lugar? No Brasil? Ora, aqui cai. Caem 10, dúzias de raios, no mesmíssimo lugar. E não é porque a natureza quer, mas porque a lógica funcional das coisas aqui praticamente pede quedas de raios, ativa as quedas, insiste para que venham, voltem, nos prefiram como alvo. Imploramos para que raios nos caiam sobre a cabeça e, do nosso jeito, instalamos não para-raios, mas atratores de raios.
O que foi aquela entrevista do presidente da Vale, Fábio Schvartsman, na noite de sábado, no Jornal Nacional, sobre o estouro da barragem da empresa, em Brumadinho? Em nenhum lugar do mundo um executivo responsável por uma tragédia criminosa como esta teria coragem de desempenhar um papel de calhorda e cafajeste naquele nível, naquela escala. Escolheu a dedo até o figurino. Se importou com tudo, menos com a VIDA das pessoas que já estavam mortas quando ele falava, se expressando com aquele distanciamento e aquela assepsia semântica de deixar Siri, a Apple’s girl, com sotaque de tabaroa.
TIOZINHO – Schvartsman não disse UMA palavra sobre as mortes, as centenas de desaparecidos, o aspecto mais urgente, doloroso e importante de todos. Escolheu seu suéter de cashmere marinho, mesmo no verão, com um jeitão de tiozinho informal que pára uns minutinhos do seu tempo para dizer aos sobrinhos do colégio interno suíço que relaxem, fiquem de boas, pois nada de mais havia acontecido. Mortos? Vidas? Até então mais de 400 desaparecidos? Quê… O tiozinho lá estava se importando com isso!
As imagens veiculadas nas emissoras do mundo inteiro, na web, nos celulares com as câmeras mais limitadas, tudo, todos exibindo cenários reais de uma hecatombe, de uma tsunami de lama, de milhões de metros cúbicos de rejeitos derrubando pontes, soterrando carros, cobrindo 140 locomotivas, destruindo linhas férreas, rios, casas, fauna, flora, espécies que vão de insetos a peixes, galinhas, pássaros, cavalos, porcos, bois e vacas de arrobas e arrobas, tudo afogado num mar de lama caudalosa que arrastava tudo. E o que diz o tiozão agasalhadinho em malha mohair marinho, no conforto de sua sala acondicionada? Que não se pode comparar com Mariana. Ele não falou em números, dados, nada. Mas lembrem-se: há apenas 3 anos, quase no mesmo lugar, uma outra barragem, da mesma Vale, matou 19 pessoas. Na hora da entrevista do CEO da Vale ao Jornal Nacional, 40 corpos mortos já haviam sido localizados em Brumadinho. Só um havia sido identificado. Aquele homem é aquilo mesmo, ou aquilo ali era ele sendo o pior do ser humano somado a uma péssima assessoria?
TERRA SECA – Resumo da fala do gestor-mor da Vale: não houve nada de tão grave. Não dá para comparar com Mariana, com Bento Rodrigues, com a Samarco. A barragem estourada estava há anos, segundo ele, desativada, e tudo o que se derramou serras abaixo e rios adentro, era tão somente terra seca. Ah, aquilo jamais poderia ser comparado a Mariana. Aquilo não era compatível à tragédia [criminosa] da Samarco. Era só terra seca. E você, embebido de alucinógenos, diante do seu celular, da sua tevê, de qualquer mídia transmissora de imagem, onde viu terra seca? E como diabos um executivo de uma empresa da qual mais de 300 funcionários diretos, além de mais de 100 terceirizados, de moradores e turistas, estavam, estão, desaparecidos, embaixo de rejeitos de lama e Deus sabe lá de que tipo de resíduo de minérios, pode se dar à canalhice de não falar em morte, em desaparecimento de gente, na morte coletiva de tudo o que havia ali?
E raios cairão, sim, nos mesmos lugares. Menos de 3% das barragens ativas ou inativas no Brasil são fiscalizadas. O contingente de recursos humanos, em todo o país, responsável por esse tipo de fiscalização é de apenas 150 pessoas. O Brasil, e sua crise e suas leis de contenção de gastos, não tem hoje dinheiro para fazer uma calçada. Mas isso não é o mais grave. O país inteiro e suas obras públicas, ou privadas, estão como uma casa de donos falidos. Tem gente dentro, mas as paredes estão rachadas, o telhado está despencando e a estrutura está ruindo. Vai acontecer de novo e de novo, em algum lugar, perto ou longe de você. A expressão “projeto ribanceira” era uma piada que inventei para ironizar pessoas conhecidas em processo de decadência moral e comportamental. Mas, infelizmente, está sendo mais tradutora da condição do Brasil em sua infraestrutura. Estamos rolando ribanceira abaixo. Em todos os sentidos.

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