9 de outubro de 2024
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Biscoito fino na tv

Foto: Arquivo Google – Área VIP

Enquanto corre solto em Salvador o barulho diante da nova novela das nove, O Segundo Sol, que ainda nem estreou, a beleza de Onde Nascem os Fortes parece passar despercebida nas redes sociais. Chamada de super série, por ficar no meio do caminho entre as minisséries e as novelas, a atual atração do fim da noite da Globo é mais um exemplo do quanto a televisão brasileira sabe produzir biscoitos finos. As séries são uma espécie de novelas gourmetizadas, mas sem qualquer alusão pejorativa ao termo.
Atravessando os estados de Pernambuco, do Piauí e da Paraíba, seja nas referências feitas pelas personagens ou pelos cenários escolhidos para as locações, Onde Nascem os Fortes é uma trama que usa o máximo de referências, armadilha das boas para um roteiro se perder no meio do caminho. Além de não desperdiçar nenhuma dessas referências, a série exibiu na primeira semana uma limpeza absoluta no resultado.
Arrocha
Enquanto se surfa na beleza da obra, não custa especular. Será que lá pelas pairagens dos três estados brasileiros com os quais a série se relaciona, a equipe e a emissora enfrentaram reivindicações quanto à escolha da trilha sonora, à formação do elenco e às representações de tipos humanos e realidades culturais, como vem se dando em Salvador com O Segundo Sol? Só com a problematização que a Bahia está fazendo das escolhas, a novela já garantiu um cesto de semanas de mídia espontânea e, automaticamente, de audiência, apesar de ameaças de que parte da população de Salvador vai boicotar a obra por não considerá-la representativa o suficiente.
Onde nascem os fortes já começa reunindo uma trinca de artesões, de cujo encontro dificilmente sairia algo meia boca: José Luiz Villamarim (diretor), George Moura (autor) e Walter Carvalho (diretor de fotografia). Somando-se aos três, o elenco fabuloso faz dobrar as expectativas. A cereja do bolo veio com uma trilha sonora tão improvável quanto aderida completamente ao cenário e às personagens. Tem literalmente de tudo e sem nenhuma gratuidade: do arrocha-sofrência-cafona de Pablo ao som cristalino experimental do belga Wim Mertens, mantendo-se fiel aos opostos o tempo todo: de Frankito Lopes a Nina Simone, de Rosana a Velvet Underground, de Gal às duplas sertanejas da vez, tudo alinhavado pelo falsete de Zeca Veloso, na abertura, cantando Todo homem (precisa de uma mãe).
A letra e a voz de Zeca parecem ter sido feitas para traduzir as dores físicas de Nonato (Marco Pigossi) e invocar a mãe, Cássia, vivida por Patrícia Pilar, que faz o périplo trágico de quem procura por um filho na pilha de vítimas da violência rotineira dos poderosos das só aparentemente pacatas cidades do interior do Nordeste, que sempre têm um dono. Ou dois, no caso de Sertão, a fictícia cidade onde a trama se dá.
Beata High Tec
Se você conhece, tem lá Os Sertões, de Euclides da Cunha, A Guerra do Fim do Mundo, de Vargas Llosa, um Antônio Conselheiro misturado com um quê de Papa Chico e do médium João de Deus. Tem Maria Bonita ciclista, Shakira travesti, o arcaico e o pop no Bodão Night Club e a beata fitness high tec a correr no mato com uma lanterna azul na cabeça.
Tem a industrialização do sertão iniciada lá atrás por Delmiro Gouveia e atualizada no presente pela fusão deste em Pedro Gouveia (Alexandre Nero) e Ramiro Curió (Fábio Assunção), os dois donos da cidade, sem lugar para o antagonismo mocinho/herói versus vilão/bandido. Mas é possível ver a série sem saber ou lembrar de nada disso e o prazer será o mesmo. A série fala de um sertão nordestino onde há WhatsApp na estrada de terra batida, sob um sol que estoura os miolos dos pobres na seca. Há os carrões 4×4 dos ricos e o enxame de motos que tomaram o lugar dos cavalos, jegues e bicicletas. É uma prova de que há vida inteligente e sofisticação estética na televisão aberta.

O Boletim

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