18 de abril de 2024
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A vida, ao vivo, realmente é muito pior

Acordar e ler os jornais me é um hábito tão automático quanto escovar os dentes. A vida impõe rotinas obrigatórias e, obviamente, na maioria dos dias não tenho mais de meia hora para zapear os olhos pelas capas dos principais jornais. Comumente as compartilho printadas nos stories.
Hoje, ao “baixar” o 1º, a Folha de S.Paulo, como meu automatismo sempre faz, me deparo com essa foto legenda. Ontem estava relendo 21 lições para o século 21, o último no novinho mas já “classicão” Yuval Noah Harari, depois de um café e dois dedos de prosa com um amigo (médico, e dos que estudam muito todo santo dia e ainda se mantém up to date com tudo o que é ensaio ou ficção). Sempre trocamos figurinhas sobre a encruzilhada da realidade brasileira com os arcos da curva dramática e técnica do resto do mundo.

Ontem falávamos de Harari por conta das referências à hierarquia aos veterinários, médicos e advogados feitas pelo governo essa semana. O Vale do Silício rankeando os filósofos e as humanas lá no pico para ajustar as inovações técnicas da engenharia, da nanotecnologia… e aqui a gente cuspindo nos faróis do saber. No resto da semana, tinha falado muito com um aluno e alguns amigos sobre a assombrosa conexão e costura feita por Kristen Roupenian em Cat Person e Outros Contos entre a fragilidade dos fortes, a força dos fracos e as neuroses que se cruzam e se encaixam, derretendo qualquer sensatez, nas relações construídas essencialmente em plataformas virtuais.

Ao ver essa foto hoje, só para me repetir, pois já sei que sou reiterativa e repetitiva, a canção de Belchior veio se juntar à conversa do café, à teoria da morte à filosofia, à vida longa à veterinária, às teses de Harari sobre as humanas e à atmosfera psi tecno de blade runner que ronda o imaginário das personagens de Cat Person. Que admirável e assustável mundo novo em que a foto (cultural) de um evento de moda, que faz a capa do jornais “respirarem” em meio a tanta aridez da realidade, diante da qual um desfile de grifes soaria como quase uma ficção leve, se transforma, empurrada pela tragédia real, em um assombro de morte.
A foto, que seria a da festa em meio à tragédia das notícias duras, se torna, porque a realidade derrubou à queima-roupa a festa fashion, na ilustração da morte. E vence a máxima do jornalismo: “bad news is good news”. E quem há de contariá-la diante de uma foto como esta? Legendando a morte, uma imposição: VOCÊ PRECISA CONHECER O TIGGO 7 PREMIUM [um carrão, lançamento da indústria automobilística].
Não nos cobrem, dos jornalistas, boas novas ou textos limpinhos, sem dor, sem tragédia, sem desgraça: a VIDA, AO VIVO, é MUITO PIOR.
É tudo muito, muito pior.
Uma marca de roupas das mais famosas do Brasil mantém agora nas redes uma campanha em que as estrelas são os funcionários anônimos que embalam as peças, que tingem os tecidos, que costuram, desenham peças…
Vejo o modelo estrelado-estatelado, morto na passarela, a outra modelo assombrada, como um espectro do quadro O Grito, de Munch, e só me vem no imaginário uma peça, dessas ativistas, com um cartaz assim nas mãos:
“EU MORRI NA sua roupa”.
A semelhança com a performance torna a tragédia toda um nevoeiro futurista, um retrato pornográfico, disruptivo e ao mesmo tempo limpo da tal distopia dentro da qual estamos, onde não sabemos mais quando cruzamos a fronteira entre o real e a ficção, entre o show e o horror, a vida a morte, a performance ou o fim de tudo. O saloon não tem mais armas. O saloon é a própria armadilha…
Esse corpo morto na passarela vai desencavar as serpentes todas donas dos ovos do universo fashion. Meninos e meninas imberbes. Famintos e famélicos, de fome voluntária e involuntária, para os corpos caberem no traço imposto pela balança negativa da moda, para os corpos se encaixarem, torturados de fome e até de cirurgias em costelas e maxilares, em formas andróginas e esqueléticas. Essa morte vai desencavar os cachês de fome, a escravidão exercida pelas marcas, o autoritarismo violento de agentes e bookers, a vida miserável e sem glamour nenhum de 1.0000 modelos para cada Gisele.
Essa morte estará para a moda assim como os meninos queimados dos contâiners do Ninho do Urubu do Flamengo estão para as crianças no futebol brasileiro. Independentemente da causa, vai causar no cenário da indústria da moda.
Aperta o play e toca Belchior:
Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve/Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve/Sons, palavras, são navalhas/E eu não posso cantar como convém/Sem querer ferir ninguém/Mas não se preocupe meu amigo/Com os horrores que eu lhe digo/Isso é somente uma canção/A vida realmente é diferente/Quer dizer, ao vivo é muito pior…

O Boletim

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