20 de abril de 2024
Colunistas Sergio Vaz

Wasp Network: Rede de Espiões / Wasp Network


De: Olivier Assayas, França-Brasil-Espanha-Bélgica, 2019
Nota: ★★★☆
Wasp Network é um filme fascinantemente internacional, globalizado. Narra fatos – reais – passados em Cuba, nos Estados Unidos e na América Central; é uma co-produção França-Brasil-Espanha-Bélgica, escrita e dirigida pelo francês Olivier Assayas, esse realizador que é a globalização em pessoa, filho de pai judeu turco – Jacques Rémy, nascido Raymond Assayas – que primeiro se radicou com a Itália e se casou com uma moça de origem húngara.
O elenco estelar tem a espanhola Penélope Cruz, o venezuelano Edgar Ramírez, o mexicano Gael García Bernal, a cubana Ana de Armas, o brasileiro Wagner Moura, o argentino Leonardo Sbaraglia.
 
O roteiro – como mostram os créditos finais – é “inspirado no livro Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, de Fernando Morais, lançado em 2011 pela Companhia das Letras.
O grande defeito do filme não é do filme – é dos distribuidores brasileiros que puserem nele o título nada atraente, confuso de Wasp Network: Rede de Espiões.
Por que não ter feito a tradução literal do título em inglês, meu Deus do céu e também da Terra? Por que não Rede Vespa? Wasp Network é um trombolho – e de quebra pode levar o espectador a pensar, como eu pensei, na usadíssima sigla em inglês Wasp de “branco, anglo-saxão e protestante”.
O título francês foi Cuban Network, cedendo espaço à palavra inglesa, mas pelo menos já colocando Cuba no meio. Na Espanha e na Argentina o filme se chama La Red Avispa, a tradução literal de Wasp Network.
É um filme muito bom, que merece ser visto por todos os que se interessam por política, por História. Depois de uma temporada nos cinemas, a partir da estréia mundial no Festival de Veneza em 1º de setembro de 2019, foi colocado na Netflix no dia 19 de junho de 2020.

“Propaganda comunista, um lixo, um filme nojento”

Como é um filme sobre Cuba, necessariamente divide opiniões, provoca discussão, causa polêmica .
Dei uma olhada nas opiniões de leitores do IMDb, e é fascinante como muitos falam de política – em geral contra o regime comunista implantado na ilha após a revolução liderada por Fidel Castro e Ernesto Che Guevara que em 1959 derrubou a ditadura corrupta e sanguinária de Fulgencio Batista.
“Propaganda comunista, um lixo, um filme nojento”, diz um leitor do grande site enciclopédico que tem tudo sobre filmes.
Um outro deu 1 estrela em 10, e escreveu apenas o seguinte: “Gostaria de dar menos!”
“Não perca seu tempo com comunismo”, diz uma outra. E prossegue: “Edgar Ramirez continua fazendo escolhas terríveis, apoiando comunistas. Que vergonha. Penélope Cruz parece Yoani Sanchez.”
Epa! Essa leitora, que se assina marianavan, e provavelmente é descendente de cubanos vivendo no exílio, cita Yoani Sanchez como se a blogueira anti-castrismo fosse pró-Castro! Ouviu o galo cantar sem ter a menor idéia de onde, como e por quê!
“Mentira, mentira e mais mentiras!!! Este filme não representa a verdade do que realmente aconteceu e promove a ideologia comunista!”, escreve um outro.
Um outro viaja na maionaise de uma forma louca: “Propaganda comunista cheia de mentiras absurdas. Este é claramente um filme feito para a narcoditadura de Cuba.”
Narcoditadura? Teria a pessoa confundido Cuba com Venezuela? Pode-se falar mal de mil maneiras sobre a Cuba dos Castros – mas dizer que o país tem a ver com tráfico de drogas é um absurdo total.
Há quem defenda pura e simplesmente que o filme deveria ser banido: “Apologia do comunismo. Não gostei do filme de jeito nenhum. Acho que ele deveria ser removido de todas as plataformas de streaming”.
Esse último aí parece pensar como um dos fedelhos bolsonaretes – com a diferença de que sabe escrever em inglês.

“A comunidade exilada cubana exige”

Há leitores que vão além da simples crítica ao “filme que faz propaganda comunista”. Eis o que diz um deles, que se assina como gcarpiceci:
“Muitas pessoas deram a este filme críticas negativas porque não concordam com sua visão política. Acho isso idiota. O filme é ruim porque é CHATO (assim, com a palavra ‘boring’ em maiúsculas) e não se importa com o que está dizendo. Não porque ele pode ser historicamente não-acurado ou por não ser anti-Castro o suficiente! Não tenho conhecimento detalhado dos fatos sobre a Rede Vespa, nem estou interessado em ter, já que, afinal de contas, ela representa um evento menor. Vi as muitas críticas focalizarem apenas a acuracidade histórica do filme, o que – do meu ponto de vista – é apenas um critério de julgamento secundário, se não terciário. Acho que Wasp Network é um filme que não chega à altura das ambições que deixa transparecer; penso que a principal falha é que a história é bastante complicada, mas nem tão relevante, original ou dramática. A segunda falha é que as opções do diretor tornaram bastante confusa uma história que já era complicada. Last, but not least, as atuações de um elenco tão brilhante são desapontadoras, para dizer o mínimo. Assim, quando um filme junta uma pilha de tantos problemas, se a acuracidade histórica é alta, média ou baixa não é a chave, na minha opinião.”
Muitos sequer tentam – ao contrário do que fez esse leitor – justificar sua opinião. Um lá diz simplesmente o seguinte: “Uma história incompreensível”.
Claro, há leitores do IMDb favoráveis ao filme, entre os 95 que já haviam escrito sobre ele até o momento em que faço esta anotação. Só quis, com os exemplos acima, mostrar como o filme de Olivier Assayas despertou polêmica, provocou o profundo mal-estar de quem é visceralmente, figadalmente anticastrista.
Vejo que houve reações iradas na comunidade de exilados cubanos em Miami. O site da revista Veja informou que no dia 27 de junho, exatos 7 dias após o lançamento do filme na Netflix, um abaixo-assinado na plataforma Change.org já contava com mais de 15 mil assinaturas, pedindo que o filme fosse retirado do catálogo da empresa de streaming. “A comunidade exilada cubana exige que a Nefflix retire o filme do catálogo, porque ele defende espiões de Castro, assassinos condenados nos Estados Unidos, e retrata José Basulto como um capo e os cubanos envolvidos na ajuda (aos refugiados) como terroristas.”
A “comunidade exilada cubana exige” que ninguém possa ter acesso ao filme. Isso é que é atitude democrática, inteligente, evoluída. Legal.

Na minha opinião, o filme mostra os dois lados

E aqui já entro com minha opinião, que vale tanto quanto a opinião de qualquer outra pessoa deste mundo de Deus e tantas vezes do diabo: Wasp Network não é uma propaganda comunista. Não é uma propaganda do regime castrista.
OK: não é um filme anticomunista, anticastrista. De forma alguma. Não demoniza o comunismo, não demoniza o regime cubano.
Quer saber? A rigor, é, sim, um filme que demonstra simpatia pelo regime cubano.
Bastaria dar uma olhada nos créditos, nos nomes que estão lá. Nós, brasileiros, sabemos perfeitamente quais são as simpatias políticas de Fernando Morais, o autor do livro que deu origem ao filme. Sabemos quais são as simpatias políticas de Wagner Moura.
Não creio que Penélope Cruz faria um filme anticomunista, anticastrista.
Mas, diabo, o diretor Olivier Assayas conseguiu fazer um filme sobre um tema tão absolutamente explosivo como este – as atividades dos grupos anti-castristas baseados nos Estados Unidos, inclusive as abertamente terroristas, e a forma com que o governo cubano as enfrentou – de uma maneira que não é, de forma alguma, partidária, panfletária, parti-pris.
São fatos controversos, é verdade. É tudo polêmico, é tudo extremamente polêmico, quando se trata de Cuba. Mas, na minha opinião, o filme consegue a proeza, a façanha, de mostrar os fatos de uma maneira bastante equilibrada. Até mesmo perto da imparcialidade.
Eis os letreiros que abrem o filme:
“Cuba vive sob um regime comunista desde 1959. O país é alvo de um embargo brutal imposto pelos Estados Unidos. Isso resultou em tremendas dificuldades para sua população. Muitos cubanos fugiram de um estado autoritário. A maioria se estabeleceu em Miami, onde muitos grupos de militantes lutam para libertar Cuba.”
Na minha opinião, o filme, como indica esse texto de abertura, mostra os dois lados – os que defendem o regime castrista, os que o combatem.
Não diz que o regime castrista é uma maravilha, de forma alguma: fala claramente dos problemas, da penúria, da falta de luz, de mantimentos, de remédios, de tudo – a ação começa em 1990, e pega portanto os anos que se seguiram ao desabamento da União Soviética e ao fim da ajuda que a até então superpotência fornecia a Cuba.
OK, é verdade que não fala da falta absoluta de liberdade, da perseguição aos opositores, da prisão de dissidentes. Mas fala, e muito, dos milhares e milhares de cubanos que se exilaram em busca de uma vida melhor.
O filme não cai hora alguma no perigoso terreno do maniqueísmo. Não há a coisa de todo americano ser bonzinho (ou mauzinho), de todo cubano ser mauzinho (ou bonzinho). Não há a coisa de todo cubano fiel ao regime ser perfeito, todo cubano que foge do regime ser filho da mãe, reacionário.
Entre os que fugiram para Miami, há os que tocam suas vidas normalmente, há os bem intencionados que querem ajudar os compatriotas que desejam também fugir da ilha – e há os que lutam contra o regime comunista. Entre esses últimos, há os que são verdadeiros democratas, mas há também os que apóiam ações terroristas para prejudicar o turismo em Cuba e assim enfraquecer o governo de Fidel Castro.
É isso. Na minha opinião, só um anticomunismo cego, radical e/ou rasteiro pode levar as pessoas a acusarem a filme de ser propaganda do regime castrista.
Na verdade, uma das grandes qualidades do filme é que ele acaba se concentrando muito na vida pessoal dos personagens. Nas situações que fazem as pessoas, os casais, os filhos sofrerem, passarem por provações, angústias.
Claro, é um filme político, sobre política, fala-se de política demais. Mas acho que o roteiro de Olivier Assayas privilegia os seres humanos, as pessoas – que, estou cada vez mais convencido – importam muito mais que as ideologias.

Uma peça em 2 atos – e no segundo ato muda tudo

Olivier Assayas escreveu o roteiro de seu filme como uma peça em dois atos bem distintos.
O filme está bem no meio, está exatamente com 60 dos seus 127 minutos, quando se fala pela primeira vez na Rede Vespa – a Wasp Network do título original em inglês.
Começa naquele momento o segundo ato – e aí muda tudo. Tudo o que havíamos visto no primeiro ato, na primeira metade do filme, teremos a partir daí que compreender sob uma outra perspectiva, completamente diferente.
Assim, creio que seria spoiler falar muito da trama do filme. Só não seria spoiler caso o eventual leitor soubesse bastante sobre a Rede Vespa. Mary e eu não sabíamos – tínhamos apenas algumas informações básicas, mais nada. E, para quem não conhecia bastante sobre a Rede Vespa, a história é fascinante, envolvente, surpreendente. Parece uma fantástica trama de espionagem criada por um autor genial, um John Le Carré – e no entanto é tudo real.
Ao final do filme, como acontece em geral com obras baseadas em histórias reais, letreiros mostram o que aconteceu com cada um dos personagens nos anos seguintes ao período retratado na narrativa. Com as fotos do ator e do personagem real. É fascinante.
O livro de Fernando Morais, Os Últimos Soldados da Guerra Fria, é, segundo o diretor e roteirista Olivier Assayas, “muito factual, mais do que narrativa, colocando a história em segundo plano, porque ele se esforça para explorar todas as camadas de uma trama extremamente complexa, que se estende por muitos anos. É muito espessa, e eu precisei de um pouco de tempo para fazer o meu caminho até lá.”
A declaração foi reproduzida no AlloCiné, o site que tem tudo sobre os filmes franceses; segundo o site, Assayas usou, para construir seu roteiro, fragmentos do livro, que cruzou com informações obtidas de outras fontes, em pesquisa sobre o assunto. “Naturalmente, tive que simplificar certos eventos, ajustar a cronologia por razões narrativas, etc.”
Segundo conta o AlloCiné, foi o produtor brasileiro Rodrigo Teixeira, que tinha os direitos do livro de Fernando Morais, que entrou em contado com o produtor Charles Gillibert, depois de ter visto Carlos, O Chacal, minissérie de 2010 de Assayas em que o venezuelano Edgar Ramírez interpreta o terrorista que se tornou famosíssimo na segunda metade dos anos 70. Gillibert, produtor e amigo de Assayas, levou o assunto ao diretor, e ele logo ficou fascinado:
“Um fragmento da história contemporânea que o cinema jamais abordou ainda. E também tem um quadro mais amplo, em que se misturam o íntimo e o universal, com indivíduos presos dentro das engrenagens da política e da história.”
O diretor diz que os fatos envolvendo a Rede Vespa “mostram como a política é também um jogo em que se define o destino dos seres humanos. As pessoas, em função de ideologias que serão talvez esquecidas amanhã, sacrificam suas existências, as pessoas próximas a elas. Elas são esmagadas pela grande roda da História.”
O AlloCiné cita também declarações interessantes de Assayas sobre política e a sua geração, que é também a minha (ele é de 1955, cinco anos mais novo que eu). “Eu vi o idealismo dos anos 70 mais ou menos desaparecer. E vi o efeito incrivelmente destruidor que teve sobre a minha geração. Não se pode fechar os olhos. Mas ele tinha também, no fundo, qualquer coisa de vital, de precioso. E esse idealismo ressoa de maneira particular nesse mundo cínico em que vivemos hoje.”

Só o pior fanatismo pode condenar o filme como propaganda

Uma busca pela internet, ainda que rápida, confirma as informações que estão no filme. Os funcionários cubanos que formaram a Rede Vespa se infiltraram nos grupos anticastristas de Miami, em especial os que financiavam o terrorismo contra Cuba, e com suas informações evitaram muitos ataques, muitas explosões de bomba, muitas mortes de inocentes.
Os ‘cinco de Cuba”, como ficaram conhecidos (talvez por uma citação aos “dez de Hollywood”, da época do macarthismo), não mataram pessoas. Não foram assassinos. Não foram terroristas. Muito ao contrário: impediram atos terroristas.
Só a mais absoluta cegueira ideológica, o pior fanatismo explica que se identifique o filme como propaganda comunista.
Anotação em julho de 2020
Wasp Network: Rede de Espiões/Wasp Network
De Olivier Assayas, França-Brasil-Espanha-Bélgica, 2019
Com Edgar Ramírez (Renê Gonzalez), Gael García Bernal (Gerardo Hernandez), Wagner Moura (Juan Pablo Roque), Penélope Cruz (Olga Salanueva, a mulher de Renê), Ana de Armas (Ana Magarita Martinez), Leonardo Sbaraglia (José Basulto)
e Nolan Guerra (Cruz León), Osdeymi Pastrana Miranda (Irma Gonzalez, a filha de Renê e Olga), Tony Plana (Luis Posada Carriles), Julian Flynn (El Tigre Viamonte, piloto da PUND), Anel Perdomo (a mulher de Gerardo Hernandez), Amanda Morado (Tete), Leandro Cáceres (Ponzón), Harlys Becerra (ativivista da CANF)
Roteiro Olivier Assayas
Inspirado no livro Os Últimos Soldados da Guerra Fria, de Fernando Morais
Fotografia Yorick Le Sauxe Denis Lenoir
Música Eduardo Cruz
Montagem Simon Jacquet
Casting Antoinette Boulat, Anna González (Espanha), María Mercedes Hernández, Valerie Daniella Hernandez Oloffson (EUA)
Produção RT Features, CG Cinéma, Nostromo Pictures,
Wasp Network AIE, Scope Pictures, France 2 Cinéma, Orange Studio.
Memento Films Production, OCS. Distribuição Netflix.
Cor, 127 min (2h07)
***
Título na França: Cuban Network. Na Espanha, Argentina: La Red Avispa.

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