13 de outubro de 2024
Sergio Vaz

Cada pequeno gesto, cada grão de areia

Um pequeno gesto seu pode ter consequência.

Uma vez, uma moça bonita me disse que, muito tempo antes, eu a tinha visto, e tinha sido simpático com ela. Não me lembrava daquilo de jeito algum. Dias atrás aconteceu coisa parecida: uma moça disse que, tempos atrás, eu havia sido legal com ela.
É fantástico como cada pequeno gesto que você faz pode ter importância. Você pode não perceber na hora, pode não guardar aquilo na sua memória, mas aquela coisa pode ficar marcada na cabeça de outra pessoa.
Coisa maluca.
Cada pequeno gesto que você faz pode ter consequência. Cada pequena coisa. “Every grain of sand”, escreveu Bob Dylan, no seu período cristão. “In the fury of the moment I can see the master’s hand, In every leaf that trembles, in every grain of sand”. Na fúria do momento, posso ver a mão do mestre, em cada folha que treme, em cada grão de areia.
Hoje, por grande coincidência, peguei o CD duplo de Dylan, exatamente da época da fase cristã, Trouble No More – The Bootleg Series Vol 13 – 1979-1981. Não conhecia, não sabia da existência dele: peguei na Livraria da Vila, onde fomos parar depois de caminhar quase 5 km pelo Baixo Pinheiros, desde a Estação Pinheiros, junto da Marginal, passando pelo prédio chiquetérrimo, esnobante da Editora Abril, que esta semana pediu falência, com dívida de R$ 1,6 bilhão. Mas achei que estava caro demais (era um CD duplo importado), e então não comprei.
Mas acho que estou tergiversando, e muito.
***
Estava falando da moça que disse que tempos atrás eu tinha sido legal com ela.
Thais dos Reis, chama-se ela. Gracinha de pessoa.
Mandou outro dia um comentário para o meu site sobre o filme O Agente da Estação:
“Seu blog é uma das melhores coisas da Internet, e há um tempão acompanho e leio tudo o que você publica. Tô louca pra ver esse filme!”
É claro que adorei o comentário. Meu ego cresceu, inflou, tive que abrir as janelas para o apartamento não explodir.
Respondi para ela perguntando se eu poderia usar o comentário na página “Dê Sua Opinião” do 50 Anos de Filmes, e ela disse que sim, claro – e acrescentou: “Poxa, se soubesse teria feito um comentário mais legal.”
Repliquei então que, se quisesse, ela poderia reescrever, mandar novo comentário, com mais tempo.
***
E aí então Thais me mandou esta mensagem aqui:
“Conheci o seu site há alguns anos, quando era estudante de jornalismo e recebi a tarefa de um professor: criar um blog sobre um assunto que era do meu interesse. Não sei exatamente a data, mas acredito que foi em 2012 ou 2013. Eu queria escrever sobre cinema, mas precisava encontrar algumas referências de conteúdos que me inspirassem. Lembro que apresentei o seu site e disse que ele tinha o escopo perfeito, entrei em contato com você por e-mail na época e você foi super atencioso.
Bom, criei o blog, que ainda está no ar, fiz diversos textos e me saí muito bem na matéria. Hoje, o blog me dá boas recordações da época da faculdade e às vezes me arrisco a escrever algumas coisinhas.
Uma coisa não mudou desde aquele tempo: me tornei sua leitora assídua. Constantemente visito o seu site em busca de dicas sobre filmes ou para saber suas percepções sobre determinada produção. O seu site tem um diferencial: os textos não são superficiais, demonstram que você tem conhecimento sobre o assunto e o mais importante: que gosta do que faz.
Acho que a vida tem dessas coisas: pequenos impulsos que aparecem no nosso dia a dia. E o retorno que você me deu, na época em que eu era estudante, foi exatamente isso. Hoje sou pós-graduada em Mídia, Informação e Cultura pela USP e atuo em uma grande empresa de Inbound Marketing, a minha especialidade? Produção de Conteúdo para Blogs.
Desejo muito sucesso e vida longa ao 50 Anos de Filmes!
***
Diacho! Não me lembrava de nada disso: não me lembrava do nome Thais dos Reis – e, evidentemente, de “ter sido super atencioso” com ela!
Mas sou um sujeito organizado. Anoto as coisas, porque, muito cedo, muito garoto, mais garoto ainda do que a Thaís era quando me mandou seu primeiro e-mail, aprendi que verba volant, scripta manent, ou, na Última Flor do Lácio Inculta e Bela, se não anotou, dançou.
E então vi lá nas minhas anotações:
“Thais dos Reis. Garotinha de 19 anos, está no terceiro período de jornalismo, faz estágio, mora em Nova Lima, mãe médica. Escreve corretíssimamente. Escreveu em 8/2010 elogiando o texto do 50ADF sobre Infâmia.”
Em agosto de 2010, Thaís dos Reis era uma “garotinha de 19 anos” que “escrevia corretissimamente”. Oito anos depois, é pós-graduada em Mídia, Informação e Cultura pela USP, e trabalha em grande empresa.
Em agosto de 2010, eu era um jornalista aposentado, com registro no Ministério do Trabalho mas sem diploma algum, e oito anos depois continuava a ser exatamente isso, um jornalista aposentado, com registro no Ministério do Trabalho mas sem sequer um diploma de terceiro grau, já que comecei três cursos de Comunicação, ou Jornalismo, mas não tive paciência para concluir nenhum deles.
Se for preso, vou pro xilindró comum, e não para o dos que têm diploma universitário. Jamais teria direito a sala especial, com TV e equipamento de ginástica e visitas todos os dias, como o chefe da quadrilha preso em Curitiba. Jamais roubei um centavo do Estado, bem diferentemente dele, e, exatamente como ele, não tenho diploma de terceiro grau, mas eu iria para as celas superpovoadas dos presídios para pobres, bem diferentemente dele, que tem – declaradamente – uma fortuna de alguns milhões.
***
Quantos milhões mesmo são os que o chefe da quadrilha petista confessa oficialmente ter? Oito? Nove? Doze?
Não sei, não me lembro. Mas aquela moça bonita que me disse que, muito tempo antes, eu a tinha visto, e tinha sido simpático com ela, era, na época em que nos reencontramos, petista de carteirinha. Achava um absoluto nojo eu ser tucano.
No entanto, apesar de ser nojentamente tucano, no passado distante – ela me contou –, eu havia sido simpático com ela.
Quando nos conhecemos, ela petista de carteirinha, eu tucano desde sempre, era uma repórter importante do Estadão. E se lembrava de que, muitos anos antes, quando começava a querer mexer com essa coisa de jornalismo, tinha ido à redação da revista Afinal, na Rua Maria Antônia, e conversado com um dos editores. Ele não prometeu nada para ela, não encomendou um frila, mas a tratou muito bem, conversou, incentivou, deu força.
Como Thais, não se esqueceu daquilo – de ter tido uma receptividade simpática, uma conversa legal, um incentivo.
É impressionante, é fantástico: cada pequeno gesto seu pode ter um significado.
Every grain of sand. Every leaf that trembles.
***
Diacho! Deveria ter comprado o CD duplo do Dylan. Tenho todos, absolutamente todos os volumes anteriores de The Bootleg Series. Não tem sentido algum não ter comprado. Agora vou ter que ir atrás.
Mas é que estava preocupado porque estava comprando a caixa dos CDs da Nara ao vivo, mais um boxe da Versátil de filmes noir franceses, mais – meu Deus do céu e também da terra – os dois volumes recém lançados pela Nova Fronteira de As Novas Aventuras de Sherlock Holmes, uma trolha imensa, gigantesca, e carésima, que reúne 50 contos sobre Sherlock escritos por 50 autores diferentes, Já era muita grana, e aí fiz a besteira de economizar.
Só falta daqui pra frente ter dificuldade de achar o Bootleg Series Vol. 13, que segurei nas mãos, e escorreu entre elas como grãos de areia.
Every grain of sand.
***
Hum…
Este texto era para contar a história da Thais.
Poderia ter contado a história da Thaís rapidamente, vapt-vupt.
Tergiversei. Falei de diversas outras coisas.
Sergiversei.
Pois é. Na semana passada, a mesma semana em que troquei mensagens com a Thaís, recebi do meu amigo Luiz Carlos Toledo a seguinte mensagem, enviada como comentário sobre um texto que publiquei em outubro de 2012:
Bem, Sérgio, a verdade é que você não tergiversa, mas sim “Sergiversa” bem pra caramba. Esses rodeios em que você vai do sotaque do Truffaut, ao nacionalismo jeca do Aldo Rebelo e às cores do Blow-Up, são típicos de quem tem muita história pra contar, mil informações passando na cabeça enquanto escreve. Está bem acompanhado: no A Hora da Estrela, Clarice Lispector, o tempo todo, desdenha do próprio texto. Se auticritica por demorar demais a entrar direto no assunto, coisa que ela só vai fazer quase no meio do livro.
Belo texto, como sempre.
P.S: Mais um comentário sobre texto antigo, para deixar o Sérgio Vaz embatucado, se perguntando “do que é mesmo que esse cara está falando?”
***
Sergiversar… Bom, isso! Bom demais!
Quando comecei a comentar muito que ia ver minha neta, meu amigo Melchíades Cunha Júnior cunhou (ai, diacho, trocadalho…) a expressão “netar”. Uma maravilha. Netar.
Minha neta criou recentemente o neologismo “mantilizar” – cobrir-se com manta.
A língua vai aprendendo novas palavras.
Quando era mais jovem, e falava menos bobagens sobre política, Caetano compôs “Outras palavras”, e usou este título para o seu álbum.
Mas acho que agora estou exagerando na sergiversação.
Péra lá, péra lá: só para concluir. Sabe a moça que lembrava que eu tinha sido simpático, solícito, quando ela queria começar no jornalismo? Não é mais petista.
A Thaís? Em quem vota a Thaís?
Ô Thaís, em que você vai votar?
O Boletim

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