29 de março de 2024
Rodrigo Constantino

Entre o monstro e o santo, entre o niilismo e a utopia, buscamos a esperança!

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Há males que vêm para o bem. Meu voo de volta do Brasil foi adiado, pois a aeronave precisava de manutenção (melhor não arriscar). O que era para ser um voo noturno, então, transformou-se num voo diurno. Sem sono, restava apenas ver filmes e ler. Aproveitei a ocasião, distante dos frenéticos acontecimentos da política nacional, para ler um livro interessante de Richard Holloway, bispo de Edimburgo e chefe da Igreja Episcopal Escocesa, chamado Entre o monstro e o santo: reflexões sobre a condição humana. Às vezes é bom sair da balbúrdia da planície para a contemplação mais elevada no planalto.
O tema me interessa bastante, pois nunca comprei a tese de “bom selvagem” de Rousseau, de um homem que nasce puro e bonzinho, mas tampouco acho que somos bestas selvagens incorrigíveis. Tenho simpatia pelo mito da Queda, pois é sempre importante lembrar como essa besta estará lá, dentro de nós, à espreita, pronta para se manifestar. Essa visão, alinhada ao conservadorismo, evita utopias e crenças infantis na capacidade de reformulação plena da natureza humana, na criação do “novo homem”. Mas somos seres perfectíveis, que podem ser aperfeiçoados, ainda que jamais perfeitos.
Ou seja, temos inclinações para o mal e para o bem, e no meio termo algum espaço para o livre-arbítrio, que tampouco é absoluto (os obsessivos podem desejar crer que controlam tudo, mas é pura ilusão). Não endosso uma visão muito otimista da condição humana, nem outra totalmente pessimista. E por isso concordei com muitos pontos abordados pelo bispo, que também procura navegar entre os dois extremos, sempre preservando a chama da esperança na humanidade acesa.
O que julguei mais interessante no livro, e surpreendente por vir de um religioso (apesar de ele mesmo se considerar um “pós-religioso”), foi a ideia de que a religião é como uma grande obra de arte, fruto da imaginação humana, mas que diz muito sobre nós mesmos. A história cristã, por exemplo, “capta a realidade da nossa experiência”, e não importa que sejam mitos fundadores, e não fatos. Na verdade, “pode-se argumentar que ela se desenvolveu ao longo dos séculos precisamente para dar conta da condição humana”.
O que várias histórias bíblicas fazem é expor um espelho diante de nós, refletindo nossa realidade não tão bela como gostaríamos. Mas fugir dessa realidade é besteira, além de perigoso. A sabedoria, tanto antiga como moderna, “reconhece que, se os seres humanos quiserem mudar de comportamento, têm de tomar conhecimento da realidade de sua condição: como dizemos hoje em dia, não podem continuar em ‘denegação’”. Holloway explica melhor:
A arte, à sua própria maneira, pode não ser redentora, mas tem o poder de nos desafiar e nos incitar à gratidão; e a gratidão, assim como a piedade, é um antídoto contra a nossa crueldade endêmica. […] Usada com parcimônia e devidamente compreendida, a religião ainda tem muito a oferecer a uma humanidade que está tentando salvar-se de si mesma. […]
O nome de Marx será eternamente associado à tentativa de transformar o mundo que se tornou monstruoso em sua crueldade. Os planos de redenção universal, quer religiosos, quer políticos, invariavelmente terminam em crueldade: para nos impor seus programas, têm de agir contrariamente à natureza humana, e fazer o possível para se livrarem da piedade. […] A piedade pode ser apenas fraqueza para o monstro, porém, é a única força do santo.
O monstro seria aquele incapaz de controlar minimamente seus apetites, seus instintos, seria alguém dominado pelas forças da natureza, como aquelas sexuais, anulando completamente sua capacidade racional. Para os monstros entre nós, tais forças são irresistíveis, enquanto os santos, sempre em menor número, são aqueles que resistem a elas, que chegam a se mostrar indiferentes diante do seu poder, ou que conseguem comandá-las.
Automaticamente surge a questão da origem do mal. Por que algumas pessoas se rendem absolutamente a tais forças e outras não? Há várias teorias, mas, para o autor, seria absurdo ignorar a existência do livre-arbítrio, ainda que limitado. Fazemos escolhas em nossas vidas, e isso faz toda a diferença, ainda que para alguns, por inúmeros motivos, o contexto seja mais complicado. Mas eis o desconcertante: mesmo gente “boa”, sem grandes traumas no passado, “também é capaz de colaborar com a crueldade e gostar do espetáculo de grande crueldade”.
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É fácil limitar o nazismo à monstruosidade de Hitler, mas o que dizer dos milhões de seus seguidores? O que dizer dos burocratas, como Eichmann, que estavam “apenas cumprindo ordens”, ainda que monstruosas, a ponto de Hannah Arendt cunhar a expressão “banalidade do mal”? O que dizer, ainda, das multidões que sempre lotaram espetáculos grotescos de linchamento ou tortura em locais públicos? Holloway oferece uma hipótese:
A necessidade de obedecer, de submeter a nossa liberdade ao controle da autoridade absoluta, pode ser uma nostalgia do nosso DNA dos tempos em que éramos impulsionados de maneira irresistível pela força da natureza. Isso pode explicar sua atração irresistível, bem como seu formidável poder sobre nós. Algo em nós quer ser afastado das responsabilidades do eu autônomo e de volta ao estado de natureza. A história está repleta de exemplos de povos inteiros que abandonaram os rigores da liberdade em troca dos consolos oferecidos pela autoridade infalível, mas ninguém foi mais aterrorizante em suas consequências que a Alemanha nazista. (meus grifos)
Ah, o fardo da responsabilidade individual! Como isso assusta. A psicologia das massas é sedutora justamente porque retira do indivíduo esse peso da responsabilidade, e ele pode passar a agir feito um animal, dando vazão aos seus apetites e instintos, pela sede por violência, poder, destruição. É o “êxtase da turba”, na qual o indivíduo pode se misturar e, assim, anular sua individualidade muitas vezes sufocante.
O livro tem vários outros insights instigantes, e mesmo sem concordar com tudo, foram boas reflexões geradas a partir de seus argumentos. Holloway é um bispo controverso, “progressista”, que abraçou a causa do direito dos animais (os relatos chocantes de como passamos a tratar os animais que comemos na era industrial desafiam o mais frio dos carnívoros humanos), dos gays, e passou a adotar uma visão humanista, agnóstica.
Ele separa em quatro as posturas diante da fé religiosa: a forte, ou de um sistema fechado, incapaz de dialogar com as novas descobertas científicas e morais, que podem levar ao fanatismo e à violência; a fraca, análoga ao método psicoterapêutico, uma espécie de “arte clínica”, e não uma ciência, que consegue se adaptar à complexidade da necessidade, usando o poder do mito “para ajudar homens e mulheres a se ajustar aos sofrimentos da existência”; uma terceira que encara a religião organizada como um instrumento social, típica daquele que frequenta a sinagoga, igreja ou mesquita de vez em quando, “porque quer ficar em contato com uma das mais antigas e duradouras instituições humanas”, quer “continuar bebericando desse potente rio”, ainda que enxergando a religião como uma excelente obra de arte, algo feito pela imaginação humana; e o último tipo seria o dos ateus fortes, que não se satisfazem em guardar consigo suas próprias certezas, e insistem em divulgá-las, os “neoateus” radicais que destilam ódio às religiões, pois as consideram causa de muita maldade no mundo.
Holloway lembra que a maldade é intrínseca ao homem, e sem a religião, o pretexto seria outro, como a política, o nacionalismo, a raça, o sexo, a cobiça por território, até mesmo o futebol. Basta ver a violência dos regimes comunistas, que se diziam ateus (mas não deixam de ser uma seita fanática). E acrescenta um ponto: se a fé religiosa pode alimentar pessoas ruins a fazer o mal, ela também pode ser o fator mais forte na resistência a ele. O histórico das religiões é banhado em sangue, sem dúvida, mas também em heróicas lutas contra a crueldade, que talvez nenhum outro instrumento poderia fazer. Os santos, que resistem aos monstros, normalmente beberam de uma fé irredutível para combater o mal, apesar de todos os riscos envolvidos.
”É verdade que a religião pode fazer quem já é ruim ficar pior, mas também pode melhorar quem é bom; é por isso que é injusto condenar seus monstros sem reconhecer seus santos”, diz o autor. E conclui seu livro com uma mensagem de esperança, lembrando que tudo o que conquistamos de beleza ou bondade brotou do solo áspero da natureza. Ou seja, partimos de um material imperfeito, o que nos impede de sonhar com qualquer perfeição humana ou social. Escreve Holloway sobre o perigo das utopias:
Todos os paraísos são paraísos perdidos. O jeito como deixamos expectativas irreais destruírem relacionamentos deteriorados, porém recuperáveis, já é bem triste; um risco maior das nossas fantasias endêmicas é quando as transpomos para o nível coletivo, quer na religião, quer na política. Mais infelicidade e desilusões foram espalhadas sobre a humanidade por sua procura da sociedade perfeita e da fé perfeita do que por qualquer outra causa.
Mas isso não quer dizer que precisamos mergulhar no abismo do niilismo, da desesperança. A religião, como as grandes obras de arte, pode ter origem dúbia, mas isso não precisa destruir seu valor duradouro. “Vista sob essa luz, a religião pode continuar a iluminar a condição humana”, alega. E fortalecer a mensagem do perdão, da empatia, da piedade. Holloway lembra que todos os monstros históricos atacaram a piedade. Robespierre, no auge do Terror jacobino, chegou a dizer que “piedade é traição”.
Sabemos que os santos capazes de resistir totalmente à monstruosidade em nós serão sempre poucos em cada geração. Exige um grau de coragem bastante raro. Mas entre os dois polos, podemos navegar buscando sempre uma aproximação maior com os santos, com aqueles que rejeitaram a sedução do poder. E o realismo em enfrentar nossa condição humana é um primeiro passo importante nessa batalha. Deixo a conclusão com Holloway:
Este mundo pode extrair ternura de nós, quando nos curvamos uns na direção dos outros por cima de portões quebrados. É um mundo de monstros e santos, um mundo mutilado, mas é o único que nos foi dado. Devemos deixar que ele nos fascine não em ódio ou ansiedade, mas em amor incondicional.

O Boletim

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