29 de março de 2024
Colunistas Mary Zaidan

Combinação perversa

Bolsonaro aposta na fidelidade dos seus e na memória fraca da maioria.

Com a costumeira empatia zero, o presidente Jair Bolsonaro usou uma menina de 11 anos, vítima de estupro, para criticar o direito ao aborto legal. Bem que tentou desviar as atenções do escândalo envolvendo o seu ex-ministro da Educação, por quem ele já colocou a cara no fogo, e agora, arrependido, só põe a mão. Mas desta vez não deu muito certo. No meio da tarde da sexta-feira, a suspeição de que ele interferiu nas investigações o empurraram para as cordas.

Ainda que a combinação perversa – sigilo do que importa e palavrório polêmico para abafar os temas que incomodam – tenha falhado, Bolsonaro aposta na fidelidade canina (ou será bovina?) dos seus e na memória fraca do público em geral. Isso explicaria o efeito tefal observado nas pesquisas de opinião, que, a despeito do cenário adverso para o presidente, o deixam no mesmo lugar – não sobe, mas também não despenca.

Mesmo evidenciando a gravidade do recuo civilizatório do país, a avalanche de ocorrências escabrosas ironicamente contribui para colocá-las no esquecimento. O arremedo golpista de 7 de setembro do ano passado, por exemplo, quase eclipsou o genocida da pandemia, aquele que corria da raia dizendo que não era coveiro. E assim vai.

A farra dos pastores no MEC, denunciada pelo Estadão há menos de três meses, só voltou à tona com a prisão de Milton Ribeiro, que começa a fazer sombra às mortes cruéis de Bruno e Dom, responsáveis por escancarar o domínio da Amazônia pelo crime organizado. Concorrem ainda com as notícias da fome afligindo 33% da população, com a procuradora espancada por colega e a juíza que tenta induzir uma criança vítima de estupro a abrir mão do direito de aborto. E Genivaldo de Jesus Santos? Quem se lembra?

É difícil apagar da mente a cena da asfixia de Genivaldo no camburão, empurrado violentamente por fardados armados, com fumaça saindo por todos os lados.

Mas aqui, além dos horrores de hoje suplantarem os do dia anterior, provocando o esquecimento, conta muito a escola bolsonarista do manter tudo escondido, travar qualquer possibilidade de transparência no que possa causar prejuízos. Utilizando-se de uma interpretação absolutamente torta da Lei de Acesso à Informação, a Polícia Rodoviária Federal impôs sigilo de até 100 anos sobre os processos administrativos dos agentes envolvidos na ação. Ao Metrópoles, alegou que seriam “informações pessoais”.

A PRF só decidiu ler a lei a seu bel prazer por ter costas largas. Bolsonaro já determinou sigilo de até 100 anos no processo contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, sobre as visitas de seus filhos – todos parlamentares – ao Palácio, incluindo seus acompanhantes, de seu cartão de vacinação. Até tentou, sem sucesso, impedir que as 35 entradas dos pastores lobistas do MEC no Planalto ficassem lacradas por um século.

Além de ecoar polêmicas aderentes aos seus fiéis só para tergiversar, e da absurda prática do segredo de estado em questões em que a norma não se aplica, a cartilha de Bolsonaro para tentar se livrar dos perrengues do seu desgoverno tem outras vertentes. Apoia-se ainda na mentira – expressa cotidianamente nas redes sociais – e no afrouxamento amplo, geral e irrestrito de qualquer fiscalização, aquelas organizações com letrinhas chatas que perturbam sua família, seus amigos e aliados. E, claro, na gastança eleitoral com dinheiro dos impostos dos brasileiros e na campanha permanente.

Já no primeiro ano de mandato, injuriado com as diligências da Coaf nas contas de seu rebento Flávio, enrolado com as rachadinhas, o papai presidente decidiu mudar a gerência, a vinculação e até o nome do Conselho, que passou a chamar Unidade de Inteligência Financeira (UIF). Movimento tão fake que nem o novo nome colou. Mas serviu para assustar servidores, reorientar e apagar investigações.

Não há um só órgão de fiscalização que tenha saído ileso. Sob Bolsonaro, todos, absolutamente todos perderam poder de investigação. Ibama, Funai e Inpe lideram o rol de organizações dinamitadas, que ainda inclui vítimas de assédio institucional como o ICMBio e o IBGE e várias universidades federais, acusadas de proselitismo de esquerda.

Esse enredo macabro de bravatas, mentiras, destruição e sigilo ainda pode fazer sucesso. Mas deveriam se limitar à seara do entretenimento, novelões e filmes B. O repertório do Brasil tem de ser outro.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 26/6/2022.

Mary Zaidan

Jornalista, mineira de Belo Horizonte, ex-Rádio Itatiaia, Rádio Inconfidência, sucursais de O Globo e O Estado de S. Paulo em Brasília, Agência Estado em São Paulo. Foi assessora de Imprensa do governador Mario Covas durante toda a sua gestão, de 1995 a 2001. Assina há mais de 10 anos coluna política semanal no Blog do Noblat.

Jornalista, mineira de Belo Horizonte, ex-Rádio Itatiaia, Rádio Inconfidência, sucursais de O Globo e O Estado de S. Paulo em Brasília, Agência Estado em São Paulo. Foi assessora de Imprensa do governador Mario Covas durante toda a sua gestão, de 1995 a 2001. Assina há mais de 10 anos coluna política semanal no Blog do Noblat.

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