Nos mil dias de Bolsonaro não há o que comemorar: festa só quando acabar o desgoverno.
O governo Bolsonaro chega aos mil dias com uma semana de eventos planejados pela propaganda oficial. A ideia é lançar obras por todo país, conferindo peso a promessas futuras. Tudo no melhor script de campanha eleitoral e, claro, fugindo do dissabor de um balanço do período. Com frases genéricas tipo “mil dias pela liberdade” de um governo “sério, honesto e trabalhador”, evita-se renovar o vexame de números manipulados, ou melhor, de mentiras como as ditas no discurso na ONU, que, cotejadas com a realidade, expuseram ao mundo o que os brasileiros estão fartos de saber: o veloz crescimento do nariz do presidente.
A marquetagem bolsonarista tem ainda de torcer para que o negacionismo do chefe não embace a festa. Parece castigo, mas as comemorações estão ameaçadas pela Covid que se impôs sobre três ministros e obrigou quarentena à comitiva que esteve em Nova York para a assembleia geral da ONU, incluindo o presidente. Marcelo Queiroga, da Saúde, “recolhido” nos Estados Unidos em lugar não sabido, e Tereza Cristina, da Agricultura, uma das estrelas dos mil dias, estão fora dos palanques.
Chega a ser um acinte pensar em festejos quando o país está próximo de alcançar a marca de 600 mil mortos e frente aos escândalos apurados pela CPI da Pandemia no Senado – todos de deixar os cabelos em pé. Gabinete paralelo, com métodos para lá de heterodoxos para alcançar a imunidade de rebanho, medicamentos condenados pela ciência, desdém a vacinas sérias como as da Pfizer e açodamento para adquirir doses milionárias de empresas sabidamente bandidas; humanos usados como cobaias do execrável kit Covid pela privada Prevent e pela saúde pública do Amazonas.
Ainda assim, a Secretaria de Comunicação tem o desplante de propagandear o governo como “constitucional, eficiente e fraterno”.
Como fraterno quando se tem um presidente sem qualquer empatia com as famílias das vítimas? Que jamais se dignou a visitar um hospital, ver as condições em que os profissionais de saúde trabalham, elogiar o que eles fazem. Que já taxou a doença de gripezinha, resfriadinho. Que é garoto propaganda de cloroquina. Que, recentemente, reafirmou em entrevista a um canal de ultra-direita alemão que o país tem números superestimados de mortos pela Covid, que só morreu quem tinha comorbidade e ia morrer mesmo.
Constitucional? Difícil combinar o conceito com as afrontas quase diárias feitas pelo presidente às instituições e ao incentivo à sua turba para uma incursão contra a Suprema Corte. Ou diante da pregação de que o povo armado não será escravizado e, portanto, todos têm de ter um fuzil – embora possam prescindir de feijão.
E como falar de eficiência com a inflação namorando os dois dígitos, crescimento estagnado e miséria crescente?
Para não cometer injustiças, é forçoso reconhecer que Bolsonaro é eficientíssimo nas redes sociais. Em mil dias, postou 13.661 mensagens em seus canais pessoais no Twitter (5.906), Facebook (4.020), YouTube (1.824 vídeos) e Instagram (1.911). O levantamento, feito pela Patri Políticas Públicas, indica ainda que o presidente bateu até mesmo a comunicação do Planalto, superando os profissionais de seu governo em 2.453 postagens. Na média, são 13,6 mensagens por dia, todos os dias, incluindo sábados, domingos e feriados. Um espanto! De fazer inveja aos mais badalados influenciadores digitais do planeta.
Paralelamente, o número de compromissos que constam na agenda – audiências de todos os tipos, reuniões, viagens, muitas delas com três ou mais eventos, amedalhamentos e formaturas militares, que Bolsonaro adora -, alcança módicos 4,7 ao dia, muito aquém do que caberia em oito horas convencionais de trabalho.
A memória do presidente também foi se enfraquecendo no período. Esqueceu-se de que prometera combater a corrupção e jamais entrar no jogo do toma lá dá cá. Seu Ministério – batia no peito – teria “no máximo 15 ministros”, oito a menos dos 23 de hoje. Aos mil dias, contabilizam-se 25 trocas em 13 pastas – só seis continuam com os titulares nomeados em janeiro de 2019 -, e duas recriações para acomodação política – Trabalho/Previdência e Comunicação.
Os pouquíssimos rojões que o presidente pode soltar têm origem no governo anterior, não no que ele chama de “comunista”, mas no de Michel Temer – reforma da Previdência, Marco do Saneamento, independência do Banco Central. Aliás, o impopular Temer se tornou referência para um solitário Bolsonaro, a quem ele recorreu depois de saraivar seus próprios pés.
No mais, talvez Bolsonaro festeje a morosidade da Justiça nos cinco inquéritos que tem contra si no Supremo e outro no TSE. Ou o longo e tortuoso caminho para que as 32 violações de seu governo aos direitos humanos, apontadas em relatório da Anistia Internacional, tenham alguma consequência, se é que terão. E, principalmente, a improbabilidade de que pelo menos um dos 138 pedidos de impeachment seja desengavetado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira.
Definitivamente, não há o que comemorar. Enquanto os homens do presidente se contorcem para colorir um marco obscuro, a maioria do país agoniza pelos 457 dias que faltam para acabar o tempo de desgoverno, de ódio e maldade, de incivilidade, de assombro.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 25/9/2021.
Jornalista, mineira de Belo Horizonte, ex-Rádio Itatiaia, Rádio Inconfidência, sucursais de O Globo e O Estado de S. Paulo em Brasília, Agência Estado em São Paulo. Foi assessora de Imprensa do governador Mario Covas durante toda a sua gestão, de 1995 a 2001. Assina há mais de 10 anos coluna política semanal no Blog do Noblat.