Ocorre uma verdadeira revolução dos sentimentos, sentidos e da natureza humana. Os cinco sentidos mais conhecidos, paladar, olfato, visão, audição, tato, estão transtornados. Os prantos e os soluços pela perda de tanta gente amada agora são rotina.
Não sei como um dia serão atualizados, estudados ou descritos esses sentidos, somados a tantos outros de que o corpo humano é capaz. Sei apenas que essa semana experimentei fortemente dois deles, soluços e prantos. Depois de tomar um soco no estômago ao saber da morte, em Salvador, de Haroldo Lima, pondo termo a uma amizade mais do que especial e de admiração mútua de 43 anos, caí em prantos, depois transformado em soluços; em seguida, uma prostração incontrolável tomou conta de meu corpo. E se passou um filme de todo um tempo e acontecimentos.
Aos 81 anos, vítima de Covid, a morte de Haroldo Lima deixa, antes de mais nada, um hiato no país, onde em toda sua existência esteve sempre – se de forma certa ou errada, radical ou não, não cabe agora analisar – à frente da luta pela liberdade, igualdade social, identidade nacional, associando garra, conhecimento geral e uma doçura poética e destacada que todos o que com ele conviveram podem atestar.
Mas aqui, na minha vida, ficou um buraco. Das poucas pessoas que me restavam constantemente preocupadas comigo, que me incentivavam em todos os momentos a seguir firme, a escrever, publicar. E a única, além de meu pai, que só me chamava por Márli, acentuando assim com seu sotaque, dando outra saborosa sonoridade ao meu nome.
Na clandestinidade, sobrevivente da chamada Chacina da Lapa, ocorrida em 76, a primeira vez que o vi chegava todo arrebentado de torturas sofridas para o “julgamento” (se é que aquilo podia assim ser chamado) ali na Justiça Militar, um predinho na Brigadeiro Luis Antonio, e que naquele momento, por artifícios e atividades políticas, pouco mais de 18 anos de idade, na faculdade, eu conseguia acompanhar. Claro, mentindo para os soldados da porta, como se fosse filha de algum daqueles fardados de cara feia e olhos tapados para as torturas sofridas, visíveis no rosto e em todo o corpo, de seus réus. O advogado era José Carlos Dias, destacado criminalista que anos depois foi Ministro da Justiça de FHC. Julgamentos inesquecíveis, que marcaram minha vida e trajetória.
Dali, depois integrando o Comitê Brasileiro pela Anistia, CBA, nos encontramos, ele e todos os outros muitos presos políticos desse momento, no Presídio Militar do Barro Branco, na militarizada Zona Norte de São Paulo. Todos os sábados os visitava. Acompanhava as suas famílias, seus filhos ainda pequenos. Trocávamos conhecimento sobre feminismo, marxismo, política, geologia. (Procure saber mais. Haroldo também foi deputado constituinte; entendia disso tudo, daí ter sido diretor geral da Agência Nacional de Petróleo, ANP, durante todo o Governo Lula). No particular, o chamava de Mister Petrolinho.
Pois foi ali, na prisão, que nasceu essa amizade especial que perdurou até a última quarta-feira, quando essa maldita doença o levou. E amizades nascidas na luta, na solidariedade, no sofrimento e nas vitórias, têm bases mais sólidas.
Volto assim a falar dos sentidos, do olfato e do paladar perdido, do ar que não se consegue respirar quando se é contaminado, do gosto amargo de tantas vidas perdidas, da falta de tato, visão e a surdez dos dirigentes que deixaram que as coisas tanto se agravassem e que pessoas fundamentais para cada um de nós estejam sendo dizimadas por não terem tido nem ao menos tempo de serem imunizadas.
Agora resta esperar que os prantos, os soluços, a dor dessas perdas, tornem todos os nossos sentidos mais fortes e que possamos continuar o sonho que todos eles sonharam, de transformação desse país em um lugar melhor e justo.
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PS.: Há alguns anos, a meu pedido, para um livro que acabou não sendo publicado, Haroldo mandou essas linhas, até agora inéditas:
“Sábado era o dia de visita no Presídio Político de São Paulo, o presídio do Barro Branco, onde eu cumpria pena, em 1977. Os familiares traziam aconchego, notícias boas e ruins. E havia gente que se sujeitava a ser “fichada” e “revistada” para se solidarizar conosco. Nós, presos, ficávamos sensibilizados.
Uma jovem de 19 anos aparecia aí, abraçada com seu jornal, o “Nós Mulheres”, dando força para a Anistia, era Marli.
Conhecimento feito nessas circunstâncias nunca será olvidado.
O tempo passou, veio a Anistia, duas décadas na Câmara, quase uma na Agência Nacional do Petróleo e, lá pras tantas, passo a receber, semanalmente, uma crônica bem urdida, escrita com maestria, sobre a vida, costumes, ideias e …mulher. Quem a escreve? Marli Gonçalves.
Já não é mais um projeto de jornalista, mas uma cronista da estirpe dos escritores. Seus comentários revolvem o cotidiano, a “vida como ela é”, com ela gracejam, batem num lado e noutro, transparecem espontaneidade e vislumbram na mulher trejeitos inesperados.
Como escritora que se lança, Marli Gonçalves perfila-se ao lado dos que se esmeram na composição do texto, na arte de burilar a frase primorosa, precisa, concisa, ritmada e sonora. O vernáculo ganhará com a prosa apurada que brota de sua lavra.”
Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).