Assistimos, só, não, somos em muitos deles os seus próprios protagonistas, mesmo contra vontade. Vivemos dentro deles. Outro dia um amigo comentava que se sente como se estivesse em um filme. Verdade absoluta, que me fez pensar nesse momento e daí descobrir ironicamente que estamos é vivendo intensamente dentro de todos os gêneros cinematográficos, inclusive os seriados.
Ninguém sabe ao certo quando vai poder ir ao cinema, sentadinho no escurinho, com aquele balde de pipoca. Nem venham me falar em drive-in que não tem graça pagar uma grana preta para entrar em um estacionamento de carro e ficar ouvindo o som da tela pelo rádio, pedindo licença para ir ao banheiro, ou esperando um hambúrguer frio chegar pela janela. Aliás, sou do tempo de drive-in bem diferente, não sei se ainda sobrou algum, lembro de um enorme que havia aqui na Avenida Santo Amaro. De outra finalidade, era um box, com cortininha e tudo, valendo os embaçados vidros do carro, que de vez em quando balançava, se é que me entendem. Mais barato e acessível que motel, que não eram tão numerosos como hoje.
Está claro que vários filmes estão sendo produzidos diariamente diante de nossos olhos, e com conteúdo que dificilmente os melhores roteiristas do mundo seriam capazes de imaginar. Mas o melhor é observar a variada produção de filmes nacionais, brasileiros, que estão diariamente em cartaz. Ora chanchadas de péssimo gosto, ora comédias dramáticas. Temos até ficção científica no filme rodado por negacionistas e terraplanistas que inventaram um planeta diferente, todo achatado; agora acrescentaram ao enredo Ets esmagados que seriam usados em vacinas chinesas que nem existem, mas que já são contra, contra o coronavírus, uma gripezinha inventada para dominar o mundo segundo esses gênios criativos, que ainda adicionaram nessa fórmula sangue de fetos. Ficção de puro terror, para exorcista nenhum botar defeito.
Os diálogos desse filme ruim também são encontrados em filmes mais rigorosos, de cunho político, ou documentários desses tempos de pandemia. Neles, ou estamos integrados ou estamos como atingidos, as vítimas retratadas nessa tragédia para a qual a única trilha musical é macabra, e o letreiro inicial deve iniciar com in memorian trazendo já quase cem mil nomes. Se for escolhido fazê-lo como letreiros finais certamente serão bem mais, dado o desenrolar desse enredo em câmera super rápida.
Interessante como os gêneros se misturam nesse cinematográfico Brasil. Faroeste/comédia: um presidente montado a cavalo correndo pelos campos do Nordeste empunhando em forma de arminha uma caixa de cloroquina; em outra cena, ele, cheio de empáfia, tira a máscara, corre atrás de emas nos campos do Palácio, que o bicam seguidamente. Manda o xerife que comanda facilitar que mais pessoas tenham armas, é aplaudido pelos filhos, pela claque da bala, pelos robôs do mundo digital. Nós só podemos prever que seja uma preparação para um próximo filme, uma continuidade, desta vez de guerra. Ou catástrofe.
Tem filme de espionagem, com dossiês sobre inimigos sendo preparados, fichas pessoais sendo levantadas por um bunker para o qual quem não está com eles é inimigo, de esquerda, comunista, gay, feminista, imprensa, categorias que pretendem exterminar porque lhes impediria de manipular a população como um Grande Irmão, personagem de um lugar aí que eles não sabem qual, quem que escreveu, do que se trata, mas ouviram falar; porque se tem um gênero de filme que não sabem fazer é o Cult.
Os últimos meses, fatos, acontecimentos, ações, decisões, diálogos, registros, surgimento e desaparecimento de personagens, que incluem até astronauta, além de generais e quetais, pastoras e jabuticabeiras, gurus de araque, milicianos, entre outras caracterizações que é melhor nem lembrar, englobam e criam roteiros e cenários (queimadas, devastação da Amazônia, boiadas, reuniões ministeriais, lives, Brasília, cercadinhos, etc.) para todos os gêneros, sem exceção. Podem se misturar. Os figurinos, sempre todos péssimos, incluindo camisetas de time falsificadas. A trilha, em geral sertaneja (ou o hino nacional cantado de forma solene). Os objetos de cena: canetas Bic, caixas de cloroquina, fuzis, pães melados com leite condensado, carimbos com a cara da família estampada, cartazes antidemocráticos. Participações especiais do presidente Donald Trump e de trogloditas que estão saindo das cavernas de forma assustadora.
Drama ou comédia, infelizmente, É Tudo Verdade. Pelo menos por enquanto. Mas precisamos editar esses filmes enquanto ainda é tempo de tirá-los do cartaz. Do jeito que estão, no máximo ganharão a Framboesa de Ouro. O tapete da cerimônia, como eles dizem, jamais será vermelho, a não ser tingido pelo nosso sangue, e de forma cruel.
Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também, pela Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon).