Num sábado, dia 15 de fevereiro de 1986, publiquei uma matéria com o Tom Jobim numa página inteira no Jornal do Brasil na minha coluna “Doce Vida”.
Foi a primeira vez que um veículo importante de mídia abriu um espaço tão grande para o Tom. Quase fui parar no olho da rua porque alguma eminência parda da redação foi reclamar com o editor, na época o Marcos Sá Correa, o absurdo de eu ter dado tanto espaço para um músico.
O Marcos, sempre um gentleman, me chamou na sala dele e perguntou o motivo de eu tinha feito isso. Expliquei, pedi que ele lesse a matéria para entender a relevância, e acabou ficando tudo por isso mesmo. A foto principal, maravilhosa, foi tirada por Ana Lontra Jobim. Publiquei ainda uma foto do Tom aos nove meses, aos nove anos e uma foto dele com a sua irmã Helena.
O Tom adorou a matéria, comemorou com os amigos, foi uma festa. Ele me disse que eu publiquei na entrevista o que ele disse melhor do que ele tinha falado. Adorei ter feito esta entrevista. Eu tenho fitas e fitas gravadas com as nossas conversas e com os deliciosos comentários muito pessoais que o Tom fazia e que eu não publiquei, of course.
Ele tinha um impecável sense of humour e uma ironia fina.
Nossa amizade começou quando um dia, entre amigos, num mês de abril, Tom começou a recitar: “April is the cruelest month … “ e eu continuei “… breeding lilacs out of the dead land, mixing memories and desire…“.
Sorrimos de felicidade um para o outro. Entre tantos amigos, só ele e eu sabíamos quase de cor T. S. Elliot. Foi afinidade instantânea.
Ah, e também gostávamos de Debussy. Minha tia, Odette Rademaker Grunewald Delgado de Carvalho, que morou muitos anos na França e na Suíça, era considerada a maior intérprete de Debussy no Brasil. E de Chopin, também. Ela era linda e mais chic, impossível. Seus vestidos de alta costura eram deslumbrantes. Muito a ouvi tocar no piano de cauda inteira com teclas de marfim na sala de concertos na casa de meus bisavós, no Rio Comprido, com janelas francesas de alto abaixo que davam paraum jardim maravilhoso com um muro de pedra coberto de samambaias e baunilha, uma orquídea trepadeira, para quem não sabe. Tia Odette era filha da tia Lili e de Joaquim Torres Delgado de Carvalho, neto do Visconde de Itaboraí e compositor renomado. Sua ópera “Moema”, muito bonita, foi apresentada como o último número do espetáculo de inauguração do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Posto de novo a matéria, para que quem não o conheceu possa ter um vislumbre desse grande e querido amigo meu.
TOM sur TOM
As pessoas que têm o privilégio de serem amigas do Tom adoram o seu senso de humor. Na Plataforma, a churrascaria que é o seu restaurante favorito, ele brinca muito com os garçons: “Garçon, how do you say garçon in Portuguese?”, ou “Garçon, sua identidade”. Seus comentários são hilariantes: “os garçons daqui você tem que quebrar a coluna para falar com eles, que se colocam em posições estratégicas”.
Tom adora poesia. Aliás, se me perguntarem numa prova o que é poesia, eu responderia com a maior tranquilidade que poesia é o Tom Jobim. Uma de suas poesias favoritas é do T. S. Eliot, The Burial of the Dead. Não dá para traduzir, porque traduttore traditore, mas começa assim: “April is the cruelest month, breeding / Lilacs out of the dead land, mixing / Memory and desire, stirring / Dull roots with spring rain. / Winter kept us warm, covering / Earth in forgetful snow…
Tom está muito satisfeito porque a Warner relançou seus discos e a Polydor também. “Estou vendo aqui um interesse muito grande em música brasileira, que parece até que sempre parte do estrangeiro. Houve um tempo aqui no Brasil em que você procurava um disco do Tom Jobim e não encontrava. É difícil para mim falar a respeito de música porque estou tão envolvido, mas acho que o brasileiro tem que gostar um pouco do Brasil.
Um mínimo é indispensável. Não sou contra rock and roll, nem contra canções italianas nem francesas. Gosto de qualquer música, sou bastante eclético. Gosto de tango, gosto de bolero. Mas essa dedicação total do Brasil ao dabliú, ao red, white and blue, isso também não pode ser.
Ultimamente você vê esse fenômeno, o americano gosta mais de música brasileira do que o próprio brasileiro. Toca-se mais música brasileira nos Estados Unidos e na Europa do que aqui. Quer dizer, o brasileiro talvez tenha uma necessidade de se perder, sei lá, de se esquecer de tudo. É um país sem memória, sem arquivo. Onde, inclusive, é muito difícil você manter um arquivo por causa da umidade, do mofo. Tudo mofa. Como diz um amigo meu, o mofo deu em tudo.”
TONS DO TOM
“O que o homem quer? Matar os índios, queimar a floresta, escravizar a mulher, engaiolar os pássaros. Qual o seu objetivo? Fazer fumaça, fabricar poluição. Eu não sou triste nem saudosista, nem acho que o mundo deva ser eternamente coberto de mato. Acho que a gente não deve é estragar tudo. O que nós fazemos é uma brutalidade total contra a mãe natureza. Nós temos que ser o pai do mico, do mico-leão, do esquilo.
Se o homem não defender os bichinhos que ainda restam e penetrar no bosque para queimar tudo e matar tudo, não sobra nem inseto. Pergunta ao Ruschi o que nós fizemos com o Brasil. Nós devastamos a floresta, que vira um deserto, um deserto chuvoso. O Rubem Braga me disse que o Brasil é um país chuvoso e hereditário.
Chove o tempo todo e quando para de chover, todo o mundo sai de caixa de fósforo na mão para botar fogo no mato. O Nordeste era coberto de florestas, que foram destruídas pelo homem. No outro dia eu soube que eles vendem as florestas todas para o americano a 50 dólares o metro cúbico de mogno, madeira de lei, madeira preciosa. Vão criar coisas insolúveis, vão acabar com a floresta brasileira. O homem corta as árvores e tudo o que nasce ele queima. A terra vira uma superfície de barro cozido, uma moringa, e fica impermeável. Aí, pode chover que a chuva não penetra. Passou uma semana sem chover, dá seca. Então nasce a palmeira indaiá. É o sinal que o deserto se estabeleceu.
Na Califórnia, onde morei quatro anos, não chove. Inclusive, um americano me disse que Hollywood fica lá porque você marca a filmagem e tem a filmagem. É aquele céu azul absoluto e a água está na torneira, todo mundo rega o seu jardim. E ainda produzem legumes, hortaliças e laranjas. Tem uma canção americana que diz: It never rains in southern Califórnia. No nordeste tem o São Francisco. Se você irrigar aquilo, acaba a chamada indústria da seca.
Acho que todo o brasileiro deve ser do partido verde. Até nossa bandeira é verde e amarela. Se você olhar para esse mundo conforme ele está, essa loucura toda, essas pessoas dedicadas a fazer coisas horríveis, você não pode achar que o mundo seja bom. Bom é o que Deus fez, ou se você não acredita em Deus, o que a natureza fez: um céu azul ou uma chuva, ou uma árvore, ou o mar, essa coisa limpa, tão bonita, essa areia.
É o retrato da burrice, o retrato da nossa incompetência, o que nós fizemos em matéria de arquitetura com esses edifícios na praia de Ipanema, um colado no outro para o vento não entrar. Aí ninguém pode gozar dos benefícios da brisa marinha. Acho tudo isso um pesadelo, um sistema de erros. E a culpa não é de Deus nem dos americanos, a culpa é nossa mesmo, porque fizemos essas besteiras todas. Essa praia já está toda inventada.
Ipanema era uma praia deserta, um areal, com aqueles calangos no sol, aquela cobra verde, a marreca irerê pousando na Lagoa Rodrigo de Freitas. Seu nome indígena era Socopenapã, que quer dizer um bando de socós. Socó é essa ave que fica assim de pé na beira d´água com um bicão grande e… pá!, de vez em quando pega um barrigudinho daqueles. A lagoa era a coisa mais piscosa do mundo, cheia de pássaros aquáticos, garças, marrecos.
Até pato pousava aqui, gaivotas, o carapirá, o João-grande. O atobá menos, porque o atobá gosta mesmo é de mar alto. Tinha parati, tainha, robalo. Os peixes adoram a lagoa. Olha o Tâmisa, aquele rio inglês. Eles tiraram a poluição e a vida voltou. Já está cheio de salmão e truta.
Outro dia li que tinha mais de um milhão de pessoas aqui, na praia de Ipanema.
Não, concebo, eu não posso admitir a ideia de ir à praia com um milhão de pessoas.
Eu amo o deserto, eu amo o alto-mar, eu amo um lugar onde você possa estender a vista.
Realmente, esse negócio da superpopulação, esse negócio de que precisamos povoar tudo, não vai dar certo, vão acabar com a poesia da terra toda. Chegam milhares de pessoas em todos os lugares, poluindo tudo. E não é só o farofeiro pobre não. O pior é o farofeiro rico, que tem acesso a qualquer lugar porque tem barco, iate e até helicóptero. Ele chega nos lugares inacessíveis que eram as últimas reservas de água limpa, de florestas, de fauna e de flora. Chega lá para poluir, para tacar fogo, colher a orquídea. Eu acho que esse papel de predador está completamente superado. Tá certo. Quando o mundo não era habitado e tinha pouca gente, você podia ter essa atitude conquistadora. Mas isso, hoje em dia, é completamente obsoleto.”
O TOM DA FLAUTA
“Eu agora ando metido a falar francês. Porque é a suprema vaidade o sujeito chegar a um ponto e começar a estudar flauta e francês. A flauta é também muito vaidosa você não acha? Ela fica assim dona da melodia, só quer saber de si. Muito presunçosa, a flauta. Ando estudando mais francês porque o que eu tenho mais medo é do Brasil me mandar como embaixador para a França e eu não poder falar francês.
Aí vai ser realmente um de-sas-tre. É o caminho oposto!
O Vinícius de Moraes saiu do Itamarati e eu entro no Itamarati, evidente. Mas eu nunca pensei nisso realmente, estou brincando.
Estava lendo Mon dernier soupir, do Buñuel. Aqueles espanhóis todos só escrevem em francês: o Picasso, o Dali.
O Luiz Buñuel dizia que um espanhol, por exemplo, tem muito mais prazer sexual porque eles foram educados naquela repressão tão grande ao sexo, que aquilo cria um ambiente especial. Você nascendo espanhol, a sua infância toda é idade média. Não pode isso, não pode aquilo, uma série de coisas. É uma coisa curiosa. Acho que o ditador Franco fez muito bem a esses artistas. É claro que ele fez mal ao povo, mas os artistas saíram da Espanha, ficaram famosíssimos em Paris, ficaram riquíssimos e foram para Nova Iorque. Eu acho que foi ótimo. Porque aquele pessoal todo que saiu da Rússia e foi para os Estados Unidos só tinha a passagem de ida, one-way ticket, tipo adeus mamãe. Já o brasileiro é arraigado no lugar.
Para você tirar o sujeito daqui tem que chatear ele muito, tem que prender, tem que torturar. Aí o sujeito vai embora, né. Nós passamos vinte anos aqui sem ter acesso ao Brasil. Você não podia falar a verdade e, se você não pode falar a verdade, só pode compactuar com a mentira. Eu, por exemplo, quando quis resolver alguma coisa fui logo preso. Todo o mundo no Brasil já foi preso. O Gilberto Gil, o Caetano, o Chico. No Brasil a gente prende os homens de bem. Sobretudo quando eles se tornam depositários de uma certa confiança popular. Quando você passa a ser considerado uma pessoa importante, isso chateia o sistema. Porque você, com a sua importancinha de indivíduo, pode dizer não. Mas esse negócio tem que mudar, porque o rumo que nós estamos seguindo é um rumo completamente suicida, é um rumo caótico. Eu vejo as multidões correrem daqui para lá, de lá para cá, com todo mundo procurando divertimento. Isso vai criar problemas incríveis.
No outro dia estava folheando um velho livro de canções do Rodgers and Hart. Quando eles tinham que terminar uma canção para um show, realmente importante, eles saíam da cidade de Nova Iorque e iam para a Filadélfia, Atlantic City. Ficavam num hotel na beira da praia que não tinha nada a ver, às vezes se registravam com outro nome e ficavam trabalhando. Um lugar assim como se eu agora saísse daqui, levasse o meu violão e fosse encontrar o Chico Buarque em Manguinhos, num motel refrigerado, para poder me concentrar numa coisa, numa palavra.
Porque realmente chega um ponto em que você tem saudade do tempo em que era um ilustre desconhecido, trabalhava à vontade e ninguém falava contigo. Para trabalhar e fazer certas músicas, eu tive que almoçar, tomar um chopinho e ir dormir às cinco horas da tarde. Acordava a uma da madrugada e aí escrevia a música. É o primeiro cantar do galo, o segundo cantar do galo, o terceiro cantar do galo. Depois vem o amiudado do galo.
O galo amiúda e aí quebra a barra e aparece aquele rosa que só existe no terceiro minuto da aurora e que o Vinícius chamava de rosa-pinto, uma cor particular do cor-de-rosa. Para trabalhar hoje em dia, só num avião ou em algum lugar onde não tenha telefone.
O Vinícius ia para Petrópolis e se escondia naquela pensão da dona Margarida. O Jorge Amado também se escondia lá, ele vai para Nova Iorque, Lisboa para escrever a história da Bahia. O Guimarães Rosa escreveu muita coisa em Estrasburgo.
Porque com a distância, a marginalização, você vê o Brasil com maior nitidez, você vê melhor os nossos hábitos, os nossos problemas.
Você não está envolvido e então pode não só observar como meditar, remeditar, repensar a sua herança, o seu sangue português, a sua brasilidade, o seu país de origem. Onde você adquiriu uma série de pontos de vista e de hábitos, de noções, preconceitos, aquelas coisas que a gente traz do berço. Eu vim aqui na Plata (Plataforma) para encontrar com você. Já falei com 30 pessoas, o que não deixa de ser um emprego.
Você faz um trottoir.
Jornalista, fotógrafa e tradutora.