6 de dezembro de 2024
Junia Turra

Crônica da adaptação

Fazendo uma limpa…

Eu, quando era pequena, achava lindo ser frentista em posto de gasolina. Limpar o vidro dos carros, encher o tanque, calibrar os pneus e aquelas pessoas sempre gentis.

Depois, o tempo passou, e nos semáforos, alguns tentavam limpar os vidros, outros faziam malabarismos, outros nos assaltavam. Nenhuma das alternativas me lembrava aquela lá de trás.

Hoje eu moro onde empregados domésticos são considerados “escravos modernos” e há a exigência legal de que todos estudem.

Crianças têm que ir para a escola. Ainda bem. A escola é pública e para todos. E todos, desta forma, são iguais nas oportunidades e se diferenciam pelo mérito, individualmente no que quiserem ser.

A profissionalização é uma regra. Ninguém precisa fazer faculdade para ostentar título. A Universidade é local pra pesquisa e pode-se passar uma vida nela.

E eu, que sempre achava estranho ter “empregados domésticos”, berrei e gritei por anos a fio ao ter que limpar a privada, as pias, ao longo da minha trajetória no exterior.

Não há faxineira. E, ainda que possível, contratar alguém para o serviço, é um estudante como você, e aí a vergonha é irreversível…

No início, as pessoas onde eu morava ficavam com olhos esbugalhados porque era um “outro eu”, uma possessão “anti-colocar-a-mão-na-merda” que tomava conta de mim e me transformava.

Eu berrava ao mundo: “Estudei tanto, ralei tanto pra sair do país pra limpar meeeerda?”

Todo mundo corria. Depois, passaram a rir. E eu ficava ainda mais furiosa, vermelha como pimentão em molho italiano…

Isso depois de eu ter chegado às vias de fato naquela frescura de fazer ânsia de vômito ao limpar as privadas, banheiras, pias, pisos…

Nunca me acostumei. Até que me acostumei… E passei a rir disso…

Somos obrigados a nos adaptar e aceitar certas realidades e mudanças. O mundo não se curva ao indivíduo, ainda que muitas das escolhas sejam pessoais e intransferíveis.

A forma que encaramos situações adversas e novidades inesperadas, aquilo que nos chacoalha no comodismo do cotidiano, é o que faz a diferença. Aquele que sai de si, que baixa a guarda da arrogância, da vaidade e orgulho pessoal, amplia perspectivas.

Quem desconstrói e observa o outro pelo outro, sem projetar nele clichês e verdades absolutas, aprende, compreende, se eleva.

Não adianta dizer e fazer pelo aplauso de muitos, muitos dos aplausos são circunstanciais. O aplauso é efêmero.

Tenha a sua opinião e convicção. Na falta dela, busque-a. Questionar e raciocinar é uma dádiva e devemos usar sempre.

O que importa é perceber aqueles com real admiração e entusiasmo porque quem valoriza o outro, valoriza a si mesmo.

Fuja de gente desequilibrada, com ego no pé. Em toda e qualquer situação, mantenha o bom humor e, se houver necessidade de tocar o terror, use a ironia e o sarcasmo: são fatais.

Se descabelar e entrar em pânico, leva ao equívoco. Admita suas limitações. Valorize o que você tem de bom. Não se cobre demais, sempre tem gente pior e melhor do que nós. Perdoe a si mesmo.

Nunca perdoe quem não pede perdão com real arrependimento. Eles merecem o desprezo, merecem ser ignorados e esquecidos. “Rei morto, rei posto”.

Lembre-se: nenhum de nós foge de si mesmo. Quando olhamos no espelho ou deitamos a cabeça no travesseiro, sabemos que não escapamos da miséria humana que nos cabe e a cada um a estranha sensação de ser um bosta ou de se bastar a si mesmo.

Ah, eu continuo a limpar as privadas e banheiros mas, por outro lado, eu também encho os pneus do meu carro, coloco combustível e limpo os vidros. E sempre sorrio, retribuindo em pensamento todos aqueles sorrisos que vi através do vidro do carro, de pessoas que estavam ali ganhando o pão de cada dia.

Junia Turra

Jornalista internacional, diretora de TV, atualmente atuando no exterior.

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Jornalista internacional, diretora de TV, atualmente atuando no exterior.

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