“Mesmo o mais sério, o mais rígido dos mundos, mesmo a velha ordem, se ela jamais cede à exigência de justiça, se jamais se curva frente ao povo que se insurge, ela se curva frente ao blefe” trecho do livro ‘A Ordem do Dia’ Eric Vuillard.
Nesse pequeno excelente livro Eric explora com maestria os fatos relativos a anexação da Áustria (Anschluss) pela Alemanha nazista.
A precisão cirúrgica com a qual o autor estabeleceu paralelos entre os fatos e as narrativas, gratificam o leitor.
Na ilustração deste post colei as duas páginas em que o procurador norte americano Alderman, durante o julgamento em Nuremberg, atraiu os nazistas para sua armadilha. O resultado é revelador. A teatral sisudez, os gestos e atitudes austeras (sic) dos ‘homens do dinheiro’ que apoiaram o projeto de poder do Reich dos 100 anos, os generais do terror, todos – juntos e misturados – são – na verdade- atores de uma ópera bufa em montagem trágica.
Engana-se quem acha que o povo é o ‘palhaço’ da história. Essas figuras prosaicas são os palhaços ‘sérios’ da História. Endinheirados, violentos e assassinos eles representam a farsa vulgar, emoldurada por gloria e poder.
Esses palhaços inundaram o mundo com o sangue de inocentes e a cenografia do terror, num palco de horrores com as suas burlescas aparições.
Não consta do livro, mas, a análise contundente do Vuillard, sobre a pequenez ridícula dos ‘supostos grandes homens’ me remeteu à lembrança da atitude plena de sentido e coragem do General Dwight David “Ike” Eisenhower, comandante Supremo das Forças Aliadas na Europa.
Logo que ele tomou conhecimento dos campos de concentração, o previdente Ike, conhecedor das morféticas práticas dos guardiões da humanidade e ‘defensores’ do povo, convocou cineastas norte-americanos a filmarem as condições encontradas por seus soldados naqueles campos de trabalho forçado e extermínio.
O experimentado general conhecia bem, em profundidade, os artifícios da alma humana e a malícia dos ‘humanistas’ panfletários, treinados em manipular desastres e amenizar tragédias perpetradas por homens poderosos contra seres humanos indefesos, modificando fatos reais, os convertendo em ‘narrativas’ adequadas à divulgação, a fim de evitar ‘dor e maior sofrimento ao povo’ arrasado pela derrota.
Ike sabia o poder da ‘bondade’ profissionalizada e as técnicas de comunicação aplicadas para convencer o povo e as próximas gerações a ‘esquecerem’ a tragédia que lhes foi imposta.
O general Ike, foi um daqueles homens raros que sabiam que após a remoção dos escombros e a restauração das ruínas de guerra, a ‘bondade’ baixaria de novo sobre a Terra e tudo seria esquecido.
Mas, Ike, não acreditava que o ‘mal’ havia sido derrotado.
Ele previu, antes de muita gente, que os desdobramentos das tragédias nazistas poderiam virar fumaça e se tornarem temas da frígida dramaturgia ‘legal’, encenada nas barras dos picadeiros judiciários, onde os ‘palhaços’ exibem seus talentos verborrágicos e a pernóstica tenacidade retórica encheria o ambiente de tolerância solidária, capaz de ‘humanizar’ monstros.
Nesse caso, os 24 nazistas, protegidos pelo rigor do Estado de Direito, poderiam recorrer a HCs e responderiam por seus crimes em liberdade. Isso poderia ter acontecido. Teve grandes chances de acontecer. Incontáveis juristas e magistrados se manifestaram em centenas de debates, artigos e publicações especializadas em direito, criticando a criação do Tribunal de Nuremberg, criado no final da Segunda Guerra Mundial pelos Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética – vencedores do conflito. Desde sua criação, o Tribunal foi ‘tachado’ por vetustos e circunspectos magistrados como um ‘tribunal de exceção’, uma corte formada pelos vencedores da guerra para condenar os derrotados. Dentre críticas lançadas contra o Tribunal, as mais contundentes certamente são a de que o ‘direito de defesa’ dos réus teria sido limitado – característica de tribunais de exceção -, que o Tribunal carecia de legitimidade e que o julgamento violou o princípio da legalidade, aplicando legislação ex post facto. ”
Ainda que eu evite traçar paralelos entre as críticas dos ‘garantistas’ à Lava Jato- dado a radical diferença entre os fatos históricos – é inevitável que a pantomima jurídica me traga à lembrança a ‘bondade’ da ministra Carmem Lucia em não revelar para o povo o que ela sabe. Atormentada pelo sentimento de que se dissesse o que sabe, o povo não dormiria. O mesmo tipo de ‘bondade’ é também ajuizado pelos rapapés prosaicos, recheados de citações, que brotam da verve pachorrenta do Celso de Mello, dos surtos egoicos do Gilmar Mendes e do escárnio cavernoso do Marco Aurélio de Mello.
É inevitável que essas atitudes me levem a considerar as artimanhas jurídicas contra a jurisprudência da prisão em segunda instância. O ridículo confronto entre certos membros do STF com o juiz e procuradores da Lava Jato, surgidas das denúncias ilegais obtidas por hackers e difundidas por uma mídia ativista, comprometida com os criminosos, não escondem o deboche e a desfaçatez encenadas com pompa e circunstância.
É inevitável que a pantomima do STF me leve a sentir o cheiro de ‘sabão’ para máquinas de ‘lavar crimes’ e enxaguar criminosos.
Alguns ministros sequer se preocupam em alvejar as manchas de sangue das vítimas anônimas sujeitas as perversidades dos criminosos do colarinho-branco por eles convertidos – às gargalhadas – em “pacientes”, com derrames de HCs com o selo ‘garantista’ do Direito ‘circunspecto’.
Uma encenação ridícula, feita por gente que se leva a sério, se acha eficiente e imune à falhas e que “ jamais se curva frente ao povo que se insurge, (mas)se curva frente ao blefe”.
Artista visual. Participou da exposição Opinião 65 MAM/RJ. Propostas 66 São Paulo, sala especial “Em Busca da Essência” Bienal de São Paulo e diversas exposições individuais no Brasil e no exterior. Foi diretor dos Museus da FUNARJ, Secretário de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas /FUNARTE e outras atividades de gestão pública em política cultural.