A vida imita a arte ou é o contrário? Ferreira Gullar estava certo ao dizer que a arte existe porque a vida não basta? Sei não, depende da vida.
A série “House of Cards”, mostrando os podres do poder e da política nos Estados Unidos, é uma “Missa das 8h”, uma “Novela das Seis”, uma “Sessão da Tarde”, perto dos podres poderes brasileiros, dos quais não mais podemos falar.
Na Suécia, Dinamarca, Noruega também falta munição para a ficção. Lá, um relógio atrasado é quase um crime, algo tão absurdo e inaceitável que pode gerar um filme ou uma série inteira. Um simples acidente vira uma tragédia. Imaginem uma Brumadinho! Inocentes, principiantes, sabem de nada…
Em 1894, o britânico Rudyard Kipling (Bombaim, 1865 – Londres, 1936) publicou “O Livro da Selva”, uma coleção de sete contos. “O Livro da Selva”, para quem não sabe, é a história de “Mogli, o Menino Lobo” e seus amigos “selvagens”, bichos da selva; uma espécie de Tarzan que, em vez de criado por macacos, na África, foi por lobos, na Índia. E eu nem sabia que a Índia tinha lobos, só tigres e de Bengala … Incluindo, “A Fera de Kumaon”.
“Não é à toa que se chama livro da selva – pois ‘selvagem’ é o adjetivo que dá o tom dos textos, que retratam a vida livre e indômita de personagens que vão de meninos criados por lobos a outros animais, em oposição à civilização humana”.
Kipling também é autor do conto “O Homem que Queria Ser Rei”. Nas mãos de John Huston, virou um de meus filmes favoritos, em 1975, com Sean Connery e Michael Caine.
Rudyard Kipling, além do nome, que já é uma aventura, foi um escritor tão completo e mágico que ganhou “o Nobel de Literatura de 1907, tornando-se o primeiro autor de língua inglesa a receber esse prêmio e, até hoje, o mais jovem a recebê-lo”.
Lembrei de arte, vida e selva por causa do acidente de avião, na Colômbia, com quatro crianças que sobreviveram, sozinhas, durante 40 dias, no meio da floresta amazônica.
Em abril, eu já tinha ficado pasmo com o caso da pescadora desaparecida, achada à deriva com corpo do marido em um barco no Amazonas. O casal ficou desaparecido durante uma semana. A mulher foi resgatada com vida. O companheiro teria morrido depois de sofrer um infarto durante a pescaria.
Ao ler esta história de horror, logo pensei que renderia um ótimo filme. Que mulher! Aos 68 anos, perdida durante dias, no Rio Negro, protegendo o marido apodrecendo; atacado por insetos e aves. Qualquer outro ou outra teria jogado o corpo no rio, no mínimo, por causa do cheiro.
Aí vem as crianças na Colômbia, outra história de terror, outro filme ainda mais emocionante.
Lesly (13 anos), Soleiny (9), Tien Noriel (5) e Cristin (1) foram encontrados vivos dia 9 de junho, no meio da floresta amazônica no sul da Colômbia, a cinco quilômetros do local do acidente, no qual três adultos morreram.
A mãe das quatro crianças indígenas resgatadas permaneceu viva por quatro dias após o acidente, dia 1º de maio.
Não foi apenas um milagre. Milagre foi não morrerem na queda; força, coragem e o conhecimento da selva foram fundamentais. Sobreviveram com a farinha de mandioca, que estava no avião, sementes e frutas. Provavelmente a mais velha, Lesly, improvisou onde dormir e protegeu os irmãos mais novos.
Outro detalhe cinematográfico: “O cachorro Wilson, um pastor belga de seis anos, que participava das buscas pelas crianças, continua desaparecido. O animal ajudou a localizar o avião e os corpos dos três adultos que morreram”.
Wilson lembra a bola de vôlei, companheira inseparável, na ilha deserta de Chuck (Tom Hanks), no filme “Náufrago” (2000), de Robert Zemeckis. O personagem de Hanks conversa com a bola durante todo o filme. Para fazer o rosto de Wilson, Chuck usa sua mão ensanguentada para desenhá-la e usa galhos para fazer os cabelos. Em 2021, a bola foi leiloada por R$ 1,6 milhão.
Robinson Crusoé tinha o nativo, sexta-feira. Chuck tinha Wilson. As crianças da Colômbia, apenas a irmã mais velha, de 13 anos…
Na vida real e em filmes sobre a Segunda Guerra Mundial e a do Vietnã, vemos como é terrível combater e sobreviver em selvas tropicais, cheias de inimigos e armadilhas. E olha que são soldados treinados…
Resumindo, neste caso, a arte deveria imitar a surpreendente vida. E aí poeta? Tem certeza de que a vida não basta?
PS: A foto de hoje parece uma selva, mas é o Parque Municipal, no centro de Belo Horizonte. Nem nele eu entraria ou sairia vivo.
Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.