1 de maio de 2024
Editorial

Precisamos proteger as vítimas e não criminalizá-las

Em mais um efeito da pandemia, as reuniões online passaram a ser obrigatórias, inclusive as audiências judiciais. Desta forma, muito mais do que na TV Justiça, as entranhas de nosso Sistema Jurídico ficaram mais expostas ao conhecimento público. Várias audiências tiveram que ser feitas de forma não presencial e gravadas.

Com isso o público passou a ter acesso a algo que apenas se via na TV Justiça. Audiências, depoimentos, julgamentos e sentenças foram levadas à pessoas que, normalmente, não procurariam tais fatos na TV específica.

Nesta semana, tremendamente atribulada com as eleições americanas, o público foi chocado com as imagens absurdas do julgamento do empresário André de Camargo Aranha por estupro de Marina Ferrer.

Causou uma comoção, no público não afeito aos melindres de nossa Justiça, o fato de o advogado do réu tentar desestabilizar, desqualificar e desacreditar a autora de uma forma tão agressiva. Isso é um procedimento processual comum em julgamentos criminais, mas neste caso específico, é impossível a quem assista àquelas cenas não se indignar ou se enojar com a linha de interrogatório seguida pelo advogado de defesa.

A OAB, mesmo sabendo que o advogado estava agindo dentro dos “princípios” regimentais na defesa de seu cliente, já criou uma comissão para investigar o comportamento deste advogado, já que as cenas estarrecedoras divulgadas mostram um processo cruel de humilhação e culpabilização da vítima, sem que qualquer medida tenha sido tomada, por qualquer membro de nosso Poder Judiciário, para garantir o direito, a dignidade e o acolhimento que são devidos pela Justiça a quem a ela recorre.

Não há como ouvir ou assistir a estas cenas sem se revoltar. É fato! É feio! É antiético, entretanto, alguns pontos, essencialmente técnicos, devem ser destacados.

Por exemplo, no Estatuto do Advogado e no Código Penal, o advogado, na defesa de seu cliente pode fazer qualquer coisa sem correr o risco de ser processado, sequer por injúria, calúnia ou difamação… está no código, artigo 142 do Código Penal (CP): Não constituem injúria ou difamação punível: I – a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador; I e III, responde pela injúria ou pela difamação quem lhe dá publicidade”.

Vejam o absurdo, o advogado pode ofendê-la, mesmo na forma como o fez, e não sofrer nenhum dano, mas quem dá publicidade ao fato, sim, este pode ser processado… coisa de maluco, não é?

Na defesa de seu cliente, o advogado “pode tudo”, no bojo do processo.

Este “tudo” tem um limite pra mim… a ética, a humanidade e a empatia. Este limite foi ultrapassado, na minha opinião.

Sigamos com os fatos técnicos: vejamos o papel e a atuação do Defensor Público. Na cena divulgada, temos 5 pessoas: a Mariana, o Juiz, o promotor, o defensor de Mariana (assistente da acusação), e o advogado do réu.. O Defensor e o Promotor NÃO ABREM A BOCA durante todo o interrogatório. Nenhum protesto. Nenhum questionamento ao Juiz sobre a forma abusiva como o advogado conduzia o interrogatório. Não fizeram ver ao Juiz, o que era óbvio, que quem estava sendo julgado ali era o réu André e não a autora Mariana, A VÍTIMA! Não sua vida pregressa… mesmo que ela fosse uma prostituta, o sexo não consensual é estupro!

É praticamente certo que em Segunda Instância esta sentença será reformada.

Mas o que estava sendo julgado ali era o fato de ela ter sido ou não estuprada. A prova principal da acusação era o sêmen do réu, que foi encontrado no vestido da vítima e em “seu interior”. Lógico que isso “apenas” prova que houve conjunção carnal (é como o CP se refere). Verdade!

O Defensor não cumpriu seu papel, não protestou, não interrompeu o interrogatório, não pediu ao juiz que o fizesse. Simplesmente assistiu a tudo placidamente. Falhou em sua atuação e, provavelmente, será punido pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) que, certamente, examinará o caso, incluído aí o Promotor.

Agora examinemos uma outra figura, também participante (e como) do julgamento: o senhor Juiz. O papel dele em um julgamento tem uma importância do tipo “até a página 3”, ou seja, há situações onde ele não deve interferir porque deveria ser papel de um dos advogados (autor ou réu) a intervenção e não cabia a ele, Juiz.

O Ministro Gilmar Mendes, ontem, deu uma declaração numa rede social, sobre o que houve durante o julgamento. Transcrevo aqui:

“As cenas da audiência da Mariana Ferrer são estarrecedoras. O Sistema de Justiça deve servir de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar responsabilidades de seus agentes, inclusive daqueles que se omitiram”…

Vejam que ele usa uma expressão forte, mas perfeitamente cabível no fato desta audiência: TORTURA. Esta discussão correu solta nas redes sociais de magistrados e foi bastante controversa. Alguns acham que o juiz agiu conforme deveria, mas outros dizem que interromperiam o advogado do réu na hora em que ele, ao invés de arguir, começasse a agredir e insultar ou torturar a autora, no momento, testemunha.

“Graças a Deus, não tenho uma filha do seu tipo!”. Uma das frases que o advogado proferiu. Alguns juízes interromperiam aí a arguição, mas sabem que esta interrupção, certamente, seria levada à próxima instância como argumento de cerceamento de defesa, podendo inclusive sofrer uma representação na Corregedoria e no CNJ contra ele. Papel difícil, porque se ele age conforme a ética e a boa educação, ele dá margem a um recurso ou mesmo uma representação contra ele. Se ele não age, fica como permissivo.

De novo: é feio! É nojento, asqueroso! Antiético! Chocante! Julgar a vítima é afastar as demais vítimas em potencial do acolhimento da Justiça.

Assim como a OAB fez contra o advogado de defesa, o CNJ vai abrir um procedimento para investigar a atuação permissiva do juiz nesta audiência e o mesmo será feito pelo CNMP, contra o Defensor que não defendeu e contra o Promotor que igualmente não se manifestou… e aí há que se notar um fato importante: em causas públicas, o acusador é o Promotor. O advogado de defesa é apenas assistente, auxiliar na acusação.

Infelizmente é assim que funciona o nosso Sistema Judiciário. O réu é inocente até prova em contrário. Ok, constitucionalmente, mas a autora, no caso, pode ser humilhada e ofendida em sua reputação (não importando qual seja) em público?

Óbvio que não. A Justiça deve acolher a vítima e dar-lhe todo o suporte necessário para que ela tenha a coragem de denunciar aquele que a agrediu, física ou psicologicamente.

Precisamos proteger as vítimas e não criminalizá-las… Como comentário apenas, já que este termo não constou da sentença: estupro culposo é brincadeira…

Valter Bernat

Advogado, analista de TI e editor do site.

Advogado, analista de TI e editor do site.

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