6 de dezembro de 2024
Cinema

A Bela Que Dorme / Bella Adormentata

De: Marco Bellocchio, Itália-França, 2012

Em 2012, Marco Bellocchio, o cineasta que personifica a contestação, “a contestação transformada em arte cinematográfica”, lançou um filme que vai fundo na discussão de um dos temas mais polêmicos da vida em sociedade: o direito de morrer.

Bella Adormentata, no Brasil A Bela Que Dorme, não é um filme assim agradável de se ver em uma sessão da tarde em um feriado ou um domingão. De forma alguma. Também não é exatamente fácil de se ver, e espero justificar direitinho essa afirmação ao longo deste comentário, mas desde já dá para resumir que Bellocchio faz um tremendo esforço para complicar a narrativa, para torná-la complexa, difícil.

Mas é um filme importante, forte, marcante, impactante. Que merece todo respeito.

Bellochio foi o autor do soggeto (o argumento, a história, a trama) e um dos autores da sceneggiatura (o roteiro), juntamente com Veronica Raimo e Stefano Rulli. O filme parte de um caso real para discutir a eutanásia – e, como se a eutanásia já não fosse tema polêmico o suficiente, Bella Adormentata discute também a vontade pura e simples de o ser humano tomar a decisão de se matar – mesmo não sendo idoso ou doente terminal.

Não é que o filme seja “baseado em uma história real”, ou mesmo “inspirado em uma história real”.

Há diferenças entre esses dois conceitos – que aliás em geral são realçados nos créditos e nos cartazes dos filmes, porque são boa peça marketing.

Bella Addormentata não usa nenhuma das duas expressões, de forma alguma. No entanto, apesar de todo o esforço para fazer uma narrativa não simples, não linear, o filme deixa claro que a história de Eluana Englaro, e toda a gigantesca repercussão dela na imprensa italiana, toda a importância que ela passou a ter sobre a sociedade, a política, só poderiam mesmo ser reais.

Para o público italiano, isso era mais do que óbvio: lançado em 2012, o filme se refere a fatos verídicos que haviam mobilizado a opinião pública em 2009. Mas mesmo o espectador que, como eu, não é italiano, não conhecia o caso de Eluana Englaro, percebe que aquilo aconteceu de fato.

Assim que terminei de ver o filme, corri para checar – e, claro, óbvio, está lá na internet toda o caso. Eluana Englaro existiu, sim, e toda a sua história se tornou um importante tema político na Itália do então presidente Silvio Berlusconi.

E aí é que está o pulo do gato: Bella Addormentata não é um filme baseado em história real, ou inspirado em história real. Ele se utiliza, com brilho, de uma história real – ele inclui a história real de Eluana Englaro e sua tremenda repercussão em uma trama que fala de vários personagens fictícios. Entre eles, há duas pessoas que, como Eluana, ficaram em coma, em vida vegetativa. E há ainda o caso de uma mulher que deseja se suicidar, e as pessoas a seu redor não deixam que ela faça o que quer.

A frase que usei lá em cima, entre aspas, para definir a obra de Marco Bellocchio – “a contestação transformada em arte cinematográfica” – é do grande crítico e pesquisador Jean Tulard. Eu ousaria fazer um acréscimo na frase do mestre: Bellochio é a contestação e a polêmica transformadas em arte cinematográfica.

Eluana ficou em estado vegetativo por 17 anos

São três diferentes histórias, três núcleos dramáticos, que vamos vendo simultaneamente. As três histórias têm como pano de fundo a história de Eluana Englaro, que não sai nunca dos telejornais a que todos os personagens assistem.

O filme, naturalmente, não apresenta os fatos básicos do caso Eluana. Não era seu dever, não estava em seu escopo – e, repito, o público italiano seguramente conhecia bem todos os detalhes. Mas acho que aqui é bom registrar logo as informações fundamentais do caso.

Eluana Englaro estava com 22 anos quando, em 1992, sofreu um acidente de carro e entrou em coma. Passou a ser mantida em suporte artificial de vida em um hospital de Lecco, sua cidade natal.

Seu pai, Beppino Englaro, pediu na Justiça que os aparelhos fossem desligados para a moça pudesse morrer. O mais exato, creio, seria dizer acabar de morrer.

Era o início do que seria uma longa, absurda batalha judicial, que foi acompanhada pela imprensa e provocou diversas manifestações públicas de defensores da eutanásia e de seus opositores.

Em 2008 – após Eluana permanecer por 16 anos em estado vegetativo, mantida “viva” artificialmente –, a mais alta corte de Justiça da Itália decidiu a favor do pedido do pai. Foi a primeira vez que a Justiça italiana autorizou que uma pessoa em coma pudesse ter sua alimentação e hidratação suspensas.

Pois bem. Na Itália assim como nos Estados Unidos, como no Brasil, como em qualquer país do mundo, a opinião pública se divide praticamente ao meio diante de temas como a eutanásia, o aborto, a pena de morte, a criminalização dos usuários de drogas. E, como sempre acontece no mundo todo, os políticos de direita, conservadores, às vezes abertamente reacionários, entram em cena brandindo princípios religiosos. O governo conservador do tudo por tudo execrável Silvio Berlusconi entrou no debate que tomava o país e apresentou um projeto de lei para, em suma, proibir a eutanásia.

Antes que houvesse a votação do Parlamento, o pai de Eluana. com base na sentença da Suprema Corte, conseguiu, em fevereiro de 2009, que finalmente fossem desligados os aparelhos, em um hospital da cidade de Udine.

Uma atriz que abandona tudo para ficar com a filha em coma

A ação do filme se passa nos primeiros dias daquele mês de fevereiro de 2009. Letreiros com as datas aparecem no início de várias das sequências. Bellocchio vai apresentando para o espectador os personagens das três histórias, simultaneamente, rapidamente – é como se ele jogasse na cara do espectador pedacinhos soltos de um quebra-cabeças.

Ao mesmo tempo, vamos vendo, em aparelhos de TV ligados pelos personagens, notícias sobre Eluana – ela estava sendo levada de Lecco, sua cidade, onde havia ficado a cargo de freiras em um convento, para Udine, para o hospital em que os aparelhos seriam desligados.

Há manifestantes contra e pró eutanásia tanto na saída de Lecco quanto na chegada a Udine. – “É a última viagem da mulher que está em coma há 17 anos”, diz um repórter na TV. Outro repórter pergunta a um médico se Eluana vai sofrer quando os aparelhos forem desligados. – “Quanto ela sofrerá?” O médico é firme, duro: – “Ela não sofrerá, porque morreu há 17 anos”.

Isabelle Huppert, a maior estrela do elenco deste Bella Addormentata, faz o papel de uma grande atriz, uma estrela famosa, admirada, conhecida como “Divina Madre”. A filha dela está – exatamente como Eluana Englaro – em coma profundo, vida vegetativa mantida artificialmente por aparelhos. É uma moça linda (o papel de Carlota Cimador), que tem sempre a companhia de uma cuidadora e, em boa parte do tempo, da própria mãe. A Divina Madre, catolicíssima, apega-se fervorosamente à esperança de que um dia qualquer a bela que dorme sairá do coma – e decidiu renunciar ao trabalho enquanto esse dia não chegasse.

Federico, o seu outro filho (o papel de Brenno Placido), não se conforma com a decisão da mãe. Quer que ela volte aos palcos, aos estúdios – acha um desperdício absurdo do talento dela essa decisão de não atuar. O pai (Gianmarco Tognazzi), de quem a Divina Madre está separada, parece concordar com Federico – mas entende que a ex-mulher tem o direito de fazer o que quiser. Ele diz para o filho uma frase definitiva:

– “Você não pode impor aos outros o que acha que está certo, entendeu? Isso é pura violência.”

Este é um filme pontuado por excelentes, brilhantes diálogos. É uma das grandes qualidades do roteiro escrito por Bellochio, Veronica Raimo e Stefano Rulli.

eu filho Pier Giorgio Bellocchio para interpretar um jovem médico sério, abnegado. O doutor Pallido é um dos dois personagens centrais de outra das três histórias do filme. O destino faz com que caia nas mãos dele uma jovem mulher, Rossa (Maya Sansa, na foto acima), uma drogada, absolutamente perdida na vida, que já havia tentado o suicídio diversas vezes. Pallido cuida da mulher, a mantém internada mesmo contra a orientação de um superior seu, que acha que, depois dos primeiros dias, Rossa poderia ter alta.

Mesmo dentro do hospital, Rossa tenta se matar pulando da janela do quarto. É impedida no último momento por Pallido, que, a partir daí, passa a ficar junto dela todo o tempo possível.

Os diálogos entre os dois – ela insistindo em que não tem interesse em continuar vivendo, que deseja morrer – são impressionantes. Duros, fortes, apavorantes.

Uma atriz que abandonou a profissão para ficar com a filha em coma profunda, uma drogada perdida que só deseja a morte.

A outra das três histórias criadas por Bellochio é sobre um pai e uma filha que têm visões opostas sobre o direito à morte com dignidade. A mulher dele, mãe dela, havia ficado em coma profundo, em vida vegetativa – e havia morrido algum tempo antes da época em que se passa a ação.

O pai, Uliano Beffardi (o papel de Toni Servillo), é um senador da República. Já está marcada a votação do projeto contra a eutanásia – defendido pelo presidente Berlusconi, que o espectador vê em cenas de noticiário da TV. O senador Uliano é de partido governista, e portanto teria que a votar a favor do projeto, como repete várias vezes para ele um colega (o papel de Gigio Morra).

Só que Uliano é a favor do direito à eutanásia.

Já sua filha, Maria, uma jovem doce, é, como a “Divina Madre”, catolicíssima, e ferrenhamente contra o direito à eutanásia. Bem no início do filme, ela avisa ao pai que está indo para Udine, para se juntar aos manifestantes contra a decisão judicial que autoriza o desligamento dos aparelhos que mantêm Eluana Englaro viva.

Maria é interpretada por Alba Rohrwacher (na foto abaixo), essa maravilhosa atriz que me encanta desde que a vi pela primeira vez, em um filme feito com imensa sensibilidade por Silvio Soldini, Que Mais Posso Querer/Cosa Coflio di Più (2010).

Na minha opinião, a história de Maria e de seu pai é a melhor, mais rica, mais densa das três que compõem o filme.

O filme provocou uma crise política na região de Udine

Boa parte do filme foi rodada na cidade de Udine, para onde Eluana foi levada e onde foram desligados os aparelhos que a mantinham viva. Algumas cenas foram feitas exatamente diante do prédio em que o tratamento foi encerrado. Alguns dos manifestantes que haviam se aglomerado no local para protestar contra ou favor da eutanásia participaram das filmagens como extras, segundo informa o IMDb.

Udine fica na região administrativa de Friuli Venezia Giulia, pouco ao Norte de Veneza, no extremo Nordeste da Itália, fazendo fronteira com a Áustria. A Comissão de Cinema da região deu suporte à produção do filme, Está lá nos créditos iniciais: “Cattleya e Rai Cinema presentano, in collaborazione con Friuli Venezia Giulia Film Commission”.

A decisão do órgão governamental provocou reações iradas dos políticos de direita, contrários à eutanásia e conscientes de que o filme de Bellocchio, um homem sabidamente de esquerda, seria favorável ao direito de escolha por não prolongar artificialmente a vida. As discussões foram acaloradas, e, por fim, o governo da região optou por fechar a comissão!

O filme foi escolhido para participar da mostra competitiva do 69º Festival de Veneza, um dos mais importantes do mundo, ao lado dos de Cannes e Berlim. Consta que Bellocchio ficou furioso por não levar o Leão de Ouro, e fez críticas ao presidente do júri, o diretor e produtor norte-americano Michael Mann, dizendo o que os filmes italianos estavam recebendo tratamento injusto.

O filme teve duas indicações ao David di Donatello, o prêmio mais importante do cinema italiano, nas categorias de melhor atriz coadjuvante para Maya Sansa e de melhor som para Gaetano Carito e Pierpaolo Merafino. A bela Maya Sansa levou o prêmio por sua interpretação da suicida drogada Rossa.

Não me lembrava disso, mas o filme levou o prêmio da crítica do Festival Internacional de Cinema de São Paulo.

Fui passando a admirar o filme cada vez mais

Eis o início da crítica do Le Monde, assinada por Thomas Sotinel, publicada quando La Belle Endormie foi lançado na França, em abril de 2013:

“Mais que a história de uma bela jovem atingida por um sono que ela não havia desejado, La Belle Endormie propõe a visita a seu castelo. A partir de um episódio recente da história italiana, o caso de Eluana Englaro, lançada a um coma por 17 anos, cujo pai, Beppino Englaro, decidiu interromper a alimentação artificial, no outono de 2008, Marco Bellocchio tenta realizar um afresco.

“Este cineasta frequentemente se aventura dentro dos recantos mais íntimos das almas à procura da essência de um fenômeno coletivo – o último exemplo até aqui, Vincere, sobre a primeira mulher de Mussolini e o fascismo. Ele faz aqui o caminho para trás. La Belle Endormie toma a forma familiar de uma galeria de personagens em que cada um encarna um aspecto de um debate nacional. O desejo de esgotar a discussão às vezes entrava o movimento do filme, que tem em alguns instantes uma estranheza pouco habitual nas obras de Bellocchio. Mas ao fim desse longo instante (o roteiro se desenrola por 24 horas), tem-se consciência da profundidade das reflexões, da intensidade dos sentimentos que suscita esse conto inspirado pelo terrível langor das nossas democracias.”

Comigo aconteceu algo interessante. Enquanto ia escrevendo aqui esta anotação – não escrevi de uma sentada; bem ao contrário, levei dias para chegar até aqui –, fui passando a gostar mais do filme do que no momento em que ele acabou.

Sinal de que é uma obra importante mesmo.

Anotação em junho de 2024

A Bela Que Dorme/Bella Addormentata

De Marco Bellocchio, Itália-França, 2012

Com Toni Servillo (senador Uliano Beffardi), Alba Rohrwacher (Maria Beffardi, a filha do senador), Michele Riondino (Roberto, o rapaz por quem Maria se apaixona), Roberto Herlitzka (o senador psiquiatra), Gigio Morra (o senador “persuasivo”),

Isabelle Huppert (a atriz conhecida como “Divina Madre”), Gianmarco Tognazzi (o marido da atriz), Brenno Placido (Federico, o filho da atriz), Carlotta Cimador (a filha da atriz, que está em coma),

Maya Sansa (Rossa, a drogada), Pier Giorgio Bellocchio (doutor Pallido, o médico abnegado), Antonio De Matteo (o jovem médico apostador),

Roteiro Marco Bellochio & Veronica Raimo & Stefano Rulli  

Argumento Marco Bellocchio

Fotografia Daniele Cipori

Música Carlo Crivelli

Montagem Francesca Calvelli

Casting Stefania De Santis

Desenho de produção Marco Dentici

Figurinos Sergio Ballo

Produção Marco Chimenz, Giovanni Stabilini, Riccardo Tozzi, Cattleya, Rai Cinema.

Cor, 115 min (1h55)

***

Título na França: “La Belle Endormie”. Nos EUA e Reino Unido: “Dormant Beauty”.

Fonte: 50 anos de filmes

Sergio Vaz

Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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