Tristes aqueles que não têm a capacidade de se emocionar diante de uma história de amor, seja ela sexual, fraternal, familiar, humanitária, o que for. Mas, mais triste ainda é sermos surpreendidos por um abalo sísmico-emocional diante de uma reportagem de jornal, de imagens de um telejornal, que nos atiram, sem aviso, sem chance de defesa psíquica, no ápice de uma compaixão dolorosa que causa uma dor de faca enterrada no peito por causa de uma história de desamor. Vítima de um desamor inominável.
Morto por desamor. Essa é a condição de Armando Bezerra, 36 anos, acorrentado há 20 anos pelo próprio pai, portanto com apenas 16 anos, em um porão, em Guarulhos (SP), segundo o que sabe a polícia até agora. Desaprendeu a andar, a falar. Está vivo, mas não está. O corpo atrofiou e o silêncio se implantou. É um adulto-criança que respira, que tem batidas no coração, mas é um menino que morreu, dia após dia, durante duas décadas. Pode haver controvérsias. E há. Mas a morte pelo desamor dos próximos, da família, deve doer mais que a morte pela violência do mundo, que a morte pelas doenças das entranhas do corpo.
BLACK MIRROR
O mundo das notícias volta e meia faz isso conosco. Nos adverte a toda hora sobre as belezas e as tragédias cotidianas do mundo. Sem nos tirar do lugar, mas nos revolvendo por dentro em redemoinhos emocionais ou viscerais, ora nos leva para os campos floridos de algum oásis perdido nos confins do planeta, ora nos lança sobre a dor do desamparo dos refugiados nas selvas europeias, da falta de sentido do menino morto numa praia turca, enquanto sua família procurava lhe dar a vida, do menino sírio coberto de sangue olhando aquela mistura de plasma e terra sem entender nada ao redor. Nos convida para expiar a dor dos expulsos pela lama tóxica que cobriu parte de Mariana (MG) levando gente, fauna, flora, vida e teto, para nos assombrar com estupros coletivos e chacinas.
Numa segunda-feira de outubro, dessas que se repetem toda semana, sempre iguais, mas nunca as mesmas, a pausa para o almoço ganha um pano de fundo indigesto, tão insuportável que nos faz lamentar um pouquinho, mas só um pouquinho, que determinados aspectos do mundo retratado na série inglesa Black Mirror ainda sejam uma maldita antiquimera tecnológica futurista, pois assim seria possível apagar ou editar pedaços de registros que nossa memória e lembranças não dão conta de carregar, tamanho o peso. Como lidar com a informação, as imagens, as entrevistas, que até agora apontam o pai de Armando como o responsável por trancafiar o filho aos 16 anos num cubículo fétido porque o menino experimentou álcool?
A FALTA NÃO SENTIDA
Seja lá qual desfecho tenha, o caso Armando ficará marcado por uma desumanização coletiva. Como um garoto de 16 anos desaparece completamente de casa, caso a versão esquisita do pai se confirme, e ninguém, dentro ou fora da família, o procure, sem interrupção? Onde estavam os membros da família para além desse pai, os pais dos amigos adolescentes, os vizinhos, os parentes de longe, a escola, os colegas, os professores? Porque ninguém foi à polícia, à Justiça, ao Conselho Tutelar, ao Juizado de Menores, à igreja ou ao inferno onde ele estava, para procurá-lo?
Que tamanho tem a falta não sentida pelo desaparecimento desse menino? E como acreditar nesse pai duvidoso, quando ele diz que Armando sumiu há 20 anos e voltou para casa há apenas dois dias, se o rapaz não consegue andar, tamanho é o atrofiamento de suas pernas? Numa história em que ninguém é culpado, é porque todos são. Ninguém poderá contar sua história, pois ela lhe foi arrancada aos 16 anos. Hoje já não há mais fala, só silêncio. De linguagem só lhe sobrou um maneio de cabeça. A qualquer coisa que lhe perguntem, ele só reage com um gesto: balança a cabeça para a frente, numa mímica de sim, não importando se lhe perguntam se é homem, se é mulher, se está preso, se está solto, se alimentando, se faminto. Sobrou um sim desconectado com o mundo, como ele.
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