A sucessão de convulsões políticas que tem assolado Brasília diariamente leva o resto do país a não dar a atenção devida a eventos que ocorrem longe do Distrito Federal. Fenômenos que embora pareçam dizer pouco à sociedade brasileira de modo geral, estão na gênese do nosso estado atual de caos. Enquanto na última semana, por exemplo, praticamente todos os olhares nacionais voltavam-se para os desdobramentos e efeitos colaterais das delações dos irmãos Joesley e Wesley Batista e para as manifestações em Brasília no dia 24, outras feridas brasileiras em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Pará se expunham para o mundo. Embora esses três casos tenham tido ínfima repercussão se comparados às chamas de Brasília, os quatro competem em pé de igualdade, em termos de imagens, em termos do diagnóstico do buraco em que o país está metido.
No que parece ser uma sina impossível de ser interrompida, quando se trata dos conflitos em torno do uso e da posse da terra no Pará, sina transformada em canção por Caetano Veloso (o império da lei há de chegar/ ao coração do Pará), a Polícia do estado torturou e assassinou dez sem-terra. As imagens publicadas em veículos nacionais de imprensa são chocantes. Flertam com cenários de açougue de carne humana. No Rio, como se já não bastassem todas as inacreditáveis humilhações impostas ao funcionalismo público estadual, que já começa a receber as contas de junho mas ainda não recebeu o salário de abril, em um processo de atraso já rotineiro, os deputados estaduais desferiram mais um golpe: aprovaram um reajuste da contribuição previdenciária, de 11% para 14%.
WALKING DEAD – Mas foi em São Paulo que o conflito entre o poder público municipal e estadual e a multidão de usuários de drogas da Cracolândia fez o mundo da gestão publicitária do prefeito João Doria despencar dia após dia, na semana inteira. Imbuído de um misto de vontade de acabar com o consumo de crack no centro da capital paulista, de vontade de aplicar ao problema o ineficaz método do higienismo datado e de uma confusão feita entre traficantes e dependentes químicos, João Doria começou a semana decretando, em um vídeo produzido para as suas redes, o fim definitivo e redundante da Cracolândia e seu arquivamento no passado de São Paulo. Entretanto, foi o próprio prefeito que terminou a semana em maus lençóis.
Ao anunciar a internação compulsória para os usuários de droga, recorrer à força policial indiferenciando traficantes de usuários e derrubar prédios com moradores dentro, Doria ameaçou o seu próprio marketing do gestor preciso, cirúrgico. O prefeito que diz que não é político, não dorme, não falha, não erra e tem, roteirizada e pronta para usar, a solução para todos problemas da maior cidade brasileira, encerrou a semana com a batalha perdida para um elenco real da série de TV Walking Dead. O que o prefeito considerou como sendo a destruição definitiva da Cracolândia acabou se revelando, já na segunda-feira do anúncio, tão somente a repetição do já ocorrido com vários dos seus antecessores na prefeitura: o espalhamento dos usuários em dezenas de subgrupos pelas ruas e praças das imediações.
VAIDADES – Como se fosse pouco perder a queda de braço para os zumbis do crack do centro de São Paulo e ter parte da equipe desfalcada, pelo pedido de demissão de secretários e técnicos que discordaram da estratégia usada no episódio, Doria experimentou ainda a discordância do judiciário e da área de saúde mental, além de um agastamento com seu inventor e padrinho político, o governador Geraldo Alckmin. O governador ficou com o ônus de ser o responsável pela Polícia Militar, a quem coube a tarefa pesada de invadir a Cracolândia para fazer “a limpeza” proposta pelo prefeito, anunciada logo depois com pompa e circunstância como mérito próprio, embora depois tudo viesse a dar errado. E a gente sabe bem como a banda toca nos bastidores das vaidades políticas em circunstâncias como essas, sobretudo agora, em tempos em que os dois travam uma queda de braço silenciosa para ver quem será o candidato do PSDB à Presidência da República. É fato que o embate entre a revitalização da área da Cracolândia e o tratamento a ser adotado pelo poder público para quem hoje vagueia sem rumo por lá está apenas começando, para azar da marketagem do prefeito. O metro quadrado de São Paulo ainda não se sobrepõe à condição humana.
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