Duas listas de 10 Mais da MPB divulgadas recentemente demonstram, de forma clara e impressionante, verdades incontestáveis. Uma: a música popular é mesmo, como digo há muitos anos, nosso melhor produto. A outra: toda lista de 10 melhores é, para dizer o mínimo, complicada, polêmica. Ou simplesmente uma grande bobagem – embora exerça um imenso fascínio sobre todos nós.
Pode parecer que as duas afirmações são paradoxais, que uma nega a outra. Tento me explicar: uma das duas listas é absolutamente objetiva, não envolve opinião de ninguém. É a relação das 10 músicas brasileiras mais gravadas em todos os tempos, de acordo com levantamento feito pelo Ecad, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, responsável pela arrecadação e distribuição dos direitos autorais das músicas a seus autores.
Não há crítico algum, opinião nenhuma por trás da lista da Ecad. Só números. E são números impressionantes. Demonstram, de maneira inequívoca, como aquelas canções foram gravadas pelos mais diversos artistas, ao redor do planeta, várias, várias, várias vezes.
A outra lista, bem ao contrário, não tem absolutamente nada a ver com qualquer critério objetivo. É só opinião, achismo. É a relação dos 10 melhores letristas da música popular brasileira – de acordo com a cabeça de um sujeito chamado Eberth Vêncio, que conseguiu a proeza de publicar o produto do seu achismo no site da revista Bula.
***
Lista de 10 melhores seja o que for – músicas, discos, filmes, livros, cantores, compositores, atores – não é fácil, de jeito nenhum.
Outro dia mesmo me meti a tentar listar os melhores filmes dos anos 50 – não os 10 melhores, em ordem de “melhoridade”, algo que seria absolutamente impossível, mas nada menos que 209, e em ordem alfabética, divididos por ano. Era uma lista objetiva, a partir dos filmes apontados em 3 livros e os escolhidos pela Academia como candidatos ao Oscar. Não tinha nada de opinião minha – e mesmo assim ficou uma lista complicada, polêmica, porque toda lista é complicada, polêmica.
Toda lista de melhores é polêmica – por natureza. Faz parte do DNA de qualquer lista a complicação, a capacidade de ao mesmo tempo atrair as atenções e as críticas.
Sim, é preciso admitir: somos todos fascinados por listas. Mesmo sabendo que são subjetivas, sujeitas a todo tipo de erro de avaliação, damos importância a elas. Ouvimos falar que tem lista, vamos lá ver – como eu e milhares de pessoas corremos para ver a lista divulgada pela revista Bula.
E aí taca a discutir sobre a lista, a criticar a lista, a meter o pau na lista. Como dizem Chico e Caetano, a gente não tem jeito, a gente não tem cura.
Eis a lista dos 10 melhores compositores da música brasileira segundo Eberth Vêncio:
1 — Aldir Blanc
2 — Zé Ramalho
3 — Belchior
4 — Djavan
5 — Gilberto Gil
6 — Caetano Veloso
7 — Vinicius de Moraes
8 — Paulo Cesar Pinheiro
9 — Cartola
10 — Chico Buarque
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Todo mundo tem direito a ter sua opinião, é claro. Opinião é isso mesmo, todo mundo tem. Há, neste mês de fevereiro do ano da graça (no caso específico brasileiro, da desgraça) de 2020, quem ache que Jair Bolsonaro é uma maravilha. Há quem goste de Donald Trump – não é pouca gente, não, e olha que aquele povo vive no país mais rico do mundo, e teoricamente teve acesso a proteína e banco de escola.
É preciso ter isso sempre em mente: cada um tem direito a ter sua opinião.
Mas o cara bota na lista dos dez melhores letristas brasileiros Djavan – o sujeito que meio mundo goza porque conseguiu a proeza de fazer a estrofe mais incompreensível da história não da MPB, mas da MPT, a Música do Planeta Terra,
“Açaí
Guardiã
Zum de besouro
Um imã
Branca é a tez da manhã”.
Bota na lista dos dez melhores Djavan – e não menciona Noel Rosa!
É dureza.
***
Botei no Facebook um post indignado sobre a lista; rolaram bons comentários e, claro, lembranças de nomes de grandes letristas. Lá vão os nomes lembrados pelos amigos do Facebook, pela Mary e por mim que não estão na lista do cara. Vão em ordem alfabética, porque tentar organizar por “melhoridade”, repito, é impossível, é insano, é doido de pedra.
Adoniran Barbosa
Ary Barroso
Ataulfo Alves
Cacaso
Cazuza
Dorival Caymmi
Edu Lobo
Fátima Guedes
Fernando Brant
Geraldo Pereira
Geraldo Vandré
Gonzaguinha
Guilherme de Brito
Humberto Teixeira
Lamartine Babo
Lenine
Luiz Tatit
Lupicínio Rodrigues
Mano Décio da Viola
Paulinho da Viola
Paulo Vanzolini
Renato Russo
Renato Teixeira
Roberto/Erasmo
Suely Costa
Taiguara
Tom Zé
Torquato Neto
Vitor Martins
Walter Franco
Zeca Baleiro
Zé Dantas
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Todos os nomes acima merecem grande respeito. Mas meu problema com a lista do sujeito é Noel Rosa.
Uma lista de grandes letristas brasileiros sem Noel Rosa é algo assim como uma lista de grandes compositores eruditos que não contenha Bach, Beethoven, Mozart e Brahms.
Algo assim como uma lista de melhores jogadores de futebol do mundo que não traga Pelé, Garrincha, Cruyff, Messi, Cristiano Ronaldo.
Uma lista dos grandes cineastas do mundo que não inclua Bergman, Antonioni, Truffaut, Buñuel, Kurosawa, Spielberg.
Uma lista das mulheres mais belas do cinema que não inclua Ingrid Bergman, Claudia Cardinalle, Catherine Deneuve, Sophia Loren.
Uma lista das montanhas mais altas do planeta sem o Everest.
Uma lista dos planeta deste sistema solar sem Júpiter.
Eberth Vêncio… Quem é você que não sabe o que diz. Meu Deus do céu, que palpite infeliz.
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Mas vamos à lista que realmente interessa. Faço uma tabela (adoro fazer tabelas).
Eis as músicas brasileiras que mais foram gravadas. À esquerda, o ano da primeira gravação e depois o número de gravações que cada uma teve.
É preciso ter sempre em mente que essa lista do Ecad não é das melhores, nem das mais importantes, nem das mais significativas – é a lista das músicas mais regravadas.
É uma característica de grande importância, sem dúvida alguma.
Ao divulgar a lista do Ecad, o colunista Lauro Jardim, de O Globo, chamou a atenção para alguns fatos básicos, importantes:
* não há na lista uma única canção sertaneja;
* seis das dez foram compostas nos anos 60;
* João Gilberto gravou 9 das 10 – de todas elas, só não gravou Asa Branca.
Há outros pontos a serem considerados.
Mary lembra que, naturalmente, o fato de uma música ser mais antiga permite que ela tenha tido mais gravações do que músicas recentes. É natural, é claro, é óbvio que “Aquarela do Brasil”, de 1939, tenha sido mais regravada do que composições surgidas nos anos 2000.
É claro também que fica a dúvida: há alguma canção surgida, digamos, nesta década atual, a segunda do século XXI, que mereça ter tantas regravações?
Sei lá. Pode ser que haja. Não conheço.
***
É necessário levar em conta que as canções que tiveram mais de duas centenas de gravações foram as que fizeram sucesso no exterior. Não haveria jeito de uma canção ter mais de 200 gravações unicamente de cantores e/ou conjuntos brasileiros.
Assim, o que fica patente nessa relação é que a bossa nova foi de fato, sem dúvida alguma, de maneira inconteste, o gênero musical brasileiro que mais fez sucesso ao redor do mundo. Meu, e que sucesso. E que fenômeno impressionante é João Gilberto, que gravou 9 das10 músicas mais regravadas mundo afora. E que absoluto fenômeno é Antônio Carlos Brasileiro Jobim, autor de 6 das 10 mais!
Vou pegar só dois exemplos, duas dessas canções.
Eis aqui alguns dos artistas e/ou grupos que gravaram “Aquarela do Brasil”: Frank Sinatra (1957), Bing Crosby (1958), Ray Conniff (1960), Paul Anka (1963), Chet Atkins (1976), Harry Belafonte (1990), Dionne Warwick (1995), Daniel Barenboim (2000), Arcade Fire (2005), Beirut (2006).
E alguns dos que gravaram “Manhã de Carnaval”: Vince Guaraldi (1991), Gerry Mulligan (1963), Perry Como (1963), Dinah Shore (1964), Cher (1968), Frank Sinatra (1990), Joan Baez (1962), Earl Klugh (1976), Tori Amos (2000), Julio Iglesias (1981), Chet Atkins, Earl Klugh e George Benson (1978), Stan Getz (1996), John McLaughlin, Paco de Lucia, Al DiMeola (1996), Luís Miguel (1997), Placido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti (1998), Paquito D’Rivera (2001), Frank Pourcel (2004), André Rieu e Carla Maffioletti (2005), Carly Simon (2006).
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É isso aí. Minério de ferro, soja, isso tem muito país que produz. Música popular dessa qualidade e dessa quantidade, só o Brasil.
E viva Noel Rosa!
Janeiro e fevereiro de 2020
Nota: Não encontrei o nome do autor da maravilhosa ilustração que abre este post. Se alguém souber, por favor, me avise, para que eu dê o devido crédito.
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