“Sway”, que nasceu “Quien será” e não para de ser regravada, é uma prova cabal disso.
Há canções que não duram mais que a gota de orvalho numa pétala em flor: brilham, depois de leve oscilam e caem como uma lágrima de amor – mas de um amor um tanto chinfrim, rastaquera, nada parecido com o grande amor.
E há as canções que ficam, que não passam. Que nem dor de amor, que quando não passa é porque o amor valeu.
Uau! Citei nas seis linhas acima trechos sublimes de Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Nelson Motta – mas estava pensando em uma canção cujo forte não é a poesia, e sim o ritmo, a melodia, o gingado, o swing, a coisa quente que leva ao molejo, ao mexer os quadris, à dança: “Sway”.
“Sway” é uma coisa impressionante. Em 1959, Rosemary Clooney, a tia do George fina estampa, fez uma gravação sensacional da música, acompanhada pela orquestra de Pérez Prado, o pianista, compositor e band leader cubano que passou para a História como o rei do mambo. A wasp Rosemary (wasp de branca, protestante e anglo-saxônica) botou na sua versão a coisa sanguínea que está no DNA da canção, a coisa latina, explosiva, sensual, arrebatada.
Ah, sim, latina, porque “Sway” é o jeito com que os gringos cantam “Quien será”, obra e graça de um mexicano chamado Luis Demetrio. “Quien será” originalmente era um bolero-mambo, algo, creio, que tenha um pouco a ver com o samba-canção: se o samba era mais lento, mais suave, chamávamos de samba-canção. Imagino que era o mesmo com o outro paísão grande desta nuestra América Latina, aquele, coitado, que fica tão perto dos Estados Unidos e tão longe de Deus. Um mambo de andamento mais lento ganhava – imagino – a definição de bolero-mambo.
Não dá para saber por que, mas o fato é que o autor Luis Demetrio vendeu os direitos da sua composição para um band leader, Pablo Beltrán Ruiz. Esse Pablo Beltrán Ruiz gravou “Quien será” em seu disco de 1953, South of the Border/Al Sur de la Frontera – Cha Cha Cha. O título do álbum já indica que Pablo Beltrán queria conquistar a América – e a verdade é que conquistou.
Um americano esperto, chamado Norman Gimbel, pegou aquele bolero-mambo que poderia passar por um cha cha cha, jogou fora a letra “em mexicano”, como dizem os americanos broncos nos filmes de Hollywood, e criou uma outra letra, totalmente diferente. Deu ao troço o nome de “Sway” – e, raios, precisaria mesmo haver um muro, ou então o México não iria parar nunca de invadir o outro lado do Rio Grande com belas canções e filmes e atores e diretores de talento.
Norman Gimbel, é forçoso registrar, foi o cara que, nos anos 60, criou as letras em inglês para 9 entre cada 10 clássicos da bossa nova. Ganhou um dinheiro do cão por botar nas canções de Tom Jobim coisas que Vinicius de Moraes jamais havia composto. Mas isso é outra história.
Em 1954, apenas um ano depois da gravação original de “Quien será”, Dean Martin gravou “Sway”, com aquela voz absolutamente Dean Martin dele, aquela coisa que a gente não sabe bem se é de um sujeito que está começando a beber, e é um grande gozador, se é de um sujeito que já bebeu uma garrafa de uísque, e é um grande gozador – aquela coisa malemolente, nonchalant, um tanto cínica, sempre safada.
Faz tempo que conheci o disco de Rosemary Clooney com Pérez Prado, que tem um título perfeito, A Touch of Tabasco. É mesmo pimenta latina pra cima da voz gostosa da tia de George Clooney – e “Sway” é uma das faixas mais deliciosas.
Julie London, a cantora mais sensual dos anos 50 e início dos 60, linda, gostosa, rouca, gravou “Sway” no seu disco Latin in a Satin Mood, de 1963.
Quarenta e um ano depois de Julie London fazer a homarada suspirar de tesão mundo afora com a canção, o wasp Richard Gere e a latina Jennifer Lopez se enfrentaram num salão para dançar “Sway” em Dança Comigo?/Shall We Dance (2004), que por sua vez era a refilmagem hollywoodiana do filme japonês Dança Comigo? (1996). O corpo de J.Lo dançando ao som de “Sway” é um poema shakespeariano, drummondiano.
Há os que não acreditam em vacinas, há os que creem na Terra plana, há os que afirmam que o aquecimento global é ficção inventada pelo marxismo cultural, há os antiglobalistas. (O governo Bolsonaro consegue reunir representantes de todas essas tribos de doidos.)_
O japonês Dança Comigo?, o americano Dança Comigo?, “Quien será”, “Sway”, são, todas essas obras que provam que o mundo é global mesmo – não importa o que digam os loucos.
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A globalista “Sway” continuou rolando durante estes anos todos, e o canadense Michael Bublé gravou a canção em seu álbum de 2003. Fez sucesso no mundo todo – com destaque para a Austrália.
Dois anos atrás, em 2017, outra artista canadense, a bela Diane Krall, fez uma nova gravação de “Sway” em seu álbum Turn Up The Quiet.
É por causa da gravação da senhora Elvis Costello que estou escrevendo esta bobagem, estas mal traçadas, este suelto.
Outro dia, tentando me aventurar pelo Spotify, em que, confesso, ainda sou aprendiz de iniciante, ouvi Diane Krall cantar “Sway”.
E Diane Krall canta “Sway” mais lentamente que professor de tai-chi-chuan se movimenta. A loura canadense faz uma leitura de “Quien Será” como se fosse um samba-canção da mais profunda fossa. Dolores Duran ou Tito Madi pareceriam alegres agentes da pilantragem de Wilson Simonal comparados ao tom tristonho de Diane Krall.
O fantástico é que Diane Krall tem um quê sensual bem próximo de Julie London.
E aí busquei Diane Krall cantando “Sway” no YouTube. Achei bem rapidamente: a voz dela em off, enquanto rolam imagens de cinema – uma outra Diane, a Lane, namorando um garotão bonito, e depois sofrendo desesperadamente pela ausência dele. (É o vídeo que está na abertura deste texto.)
Minha cabeça deu um tilt. Achei que aquilo fosse um videoclipe oficial, criado para impulsionar a popularidade da versão de Diane Krall para a canção.
Nada! Como Mary muito bem sacou, aquilo não era um videoclipe original, muito menos oficial. Eram cenas de um filme que alguém, muito safo, pegou para misturar com “Sway” cantada por Diane Krall.
Sim, claro que é isso: uma pesquisinha bem rápida mostra que são algumas tomadas do filme Infidelidade/Unfaithfull, de 2002, que já haviam sido reunidas e editadas daquela forma. O tal clipe que eu vi é apenas a colagem daquelas imagens com a versão de Diane Krall para “Sway”.
Não vi nem quero ver Infidelidade/Unfaithfull – que vem a ser uma refilmagem hollywoodiana de A Mulher Infiel, que Claude Chabrol lançou em 1968. Vi o original, já me basta.
Mas são muito belas as cenas de Infidelidade que aparecem nesse clipe que é cópia de outro clipe de imagens tiradas do filme. Não tenho muita simpatia por Diane Lane, e ela realmente faz careta demais, e mexe com os cabelos demais, mas é danada de bonita.
O fato de uma pessoa – que se assina Marie M – ter feito essa colagem das cenas de Infidelidade com a versão de Diane Krall de “Sway” só prova aquela minha velha tese: as boas canções não morrem, não desaparecem. Ficam aí, sempre – e, volta e meia, são regravadas por artistas de sensibilidade.
C.Q.D. – Como queríamos demonstrar.
Teorema devidamente equacionado e demonstrado, descobri, agora, na hora de postar este texto, mais uma característica de “Sway”: a música tem sido usada por fãs de Rita Hayworth para dar a trilha sonora a videos com montagens de cenas em que a maravilhosa mulher dança. Há mais de um vídeo desses à disposição do respeitável público.
Transcrevo aqui as letras da canção – tanto a original mexicana quanto a versão criada por Norman Gimbel. E logo abaixo dou os links para algumas versões da música, que não dei ao longo do texto para evitar que o leitor que caísse aqui fosse direto para o YouTube e não voltasse para o meu suelto.
Agora, os vídeos.
* Uma versão da “Quien será” original, com o Trio Los Panchos. Coisa dos anos 50.
* A versão swingada, irresistível, de Rosemary Clooney e Perez Prado, de 1959.
* A versão ondulosa, gostosa, de Dean Martin.
* A versão das Pussycat Dolls, com cenas do filme Dança Comigo?/Shall We Dance, com Richard Gere e Jennifer Lopez, de 2004.
Se quiser ler sobre o filme, clique aqui.
* Um vídeo com uma versão de cantora que não consegui identificar, só com imagens de Rita Hayworth dançando, em vários filmes.
* Um vídeo glorioso de Rita Hayworth dançando com Fred Astaire, com, em vez do som original, a versão de de “Sway” com Dean Martin.