29 de março de 2024
Colunistas Sergio Vaz

Calma e reflexão

É o que Judiciário e Legislativo devem ter. A nós, o povo, cabe berrar, protestar, não deixar barato.
Certamente haverá gente boa, inteligente, lúcida, reclamando do artigo de primeiro domingo do mês de Fernando Henrique Cardoso. Em seu artigo deste início de março, o ex-presidente, com a lucidez de sempre, sugere calma e reflexão.

Foto: Google – Pleno NewsNesse

Argumenta que falar de impeachment agora é no mínimo arriscado; processo de impeachment é complexo demais, “desgasta os Poderes e deixa mágoas de difícil superação”. “Mais ainda: por trás da votação no Congresso e das alegações jurídicas, no impeachment existe sempre um movimento popular, que não se vê no momento. Melhor nem cogitar, prematuramente, de tal movimento.”
Calma e reflexão. Prudência e caldo de galinha.
Quem recomenda isso, neste momento absurdamente polarizado, é claro que se arrisca a levar todo tipo de paulada.
Eu mesmo, alma tucana desde quase sempre, no mínimo desde antes daquele bando de grandes pessoas – Franco Montoro, Mario Covas, FHC, José Richa, Euclides Scalco – criar o PSDB, ando com a faca nos dentes, com a certeza de que já há motivos mais do que suficientes para se falar de impeachment, sim, para se incentivar juristas e deputados a preparar pedidos de processo de impeachment.
Mas isso sou eu, mais uma meia dúzia. Talvez até já sejamos mil. Talvez quem sabe uns 10 mil. 100 mil, no país todo, será que já somos?
De qualquer forma, somos poucos, ainda. FHC está coberto de razão e lógica quando diz que é preciso haver – antes que se trate de pedir a abertura de um processo de impeachment – um movimento popular. ´
O pedido de impeachment tem que partir primeiro das ruas, do povo. Tá legal, pode ser também o povo falando, se movimentando nas redes sociais, que hoje muitas vezes substituem as praças, os comícios. Mas tem que começar do povo. Os políticos vêm depois, arrastados pelo povo.
Se tentarem vir antes, se tentarem, eles, arrastar o povo, não estarão prestando bons serviços ao país.
Os políticos prestarão bons serviços ao país hoje se agirem com calma, após reflexão. Com prudência e caldo de galinha.
Se fizerem exatamente o contrário do que Jair Bolsonaro e seu bando fazem.
Se Legislativo e Judiciário agirem da forma oposta à de Jair Bolsonaro e seu bando, é até possível que o país avance um tanto nas reformas absolutamente necessárias – embora o presidente da República se preocupe só com criar crises, bater na imprensa e no Congresso e reclamar que os parlamentares não aprovam seus importantíssimos projetos sobre carteiras de motorista, radares móveis e carteirinhas de estudante.
Se as instituições agirem com respeito à Constituição, e doses de calma, reflexão, prudência e caldo de galinha, Jair Bolsonaro e seu bando continuarão agredindo a lógica, o bom senso, as leis, os direitos humanos, as Constituição – e dando mais e mais motivos para um processo de impeachment.
A nós, cidadãos, eleitores, nós que mantemos toda a imensa estrutura do Estado com o nosso trabalho e os nossos impostos, cabe ficar atento e forte. Não deixar passar uma única agressão de Bolsonaro & cia. às leis, aos direitos, à lógica, à razão, às liberdades.
Temos que reagir, berrar, reclamar, protestar. Quando nos sentirmos fortes o suficiente, temos que ir às ruas, sim.
Quando formos muito, muito, muito mais que 100 mil, aí será a hora de as instituições fazerem o seu trabalho.
Sim. Processo de impeachment é complexo demais, desgasta os Poderes e deixa mágoas de difícil superação – mais vai chegar a hora em que não haverá outro jeito.
Besteira desse presidente de miolo mole em pedra dura tanto bate até que fura.
***
Hora de convergir
Fernando Henrique Cardoso, O Estado de S. PauloeO Globo, 1º/3/2020
Nem parece semana de carnaval. Em lugar da modorra habitual no circuito político, muita agitação. O círculo próximo ao presidente não deu folga. Nem ele. Foi um chacoalhar o tempo todo. Agora, depois da quarta-feira de Cinzas, é melhor acalmar e refletir.
Falar de impeachment (mesmo que haja nos meios jurídicos e nos tribunais superiores quem tenha considerado a hipótese cabível) seria, no mínimo, arriscado. O País viu dois presidentes diretamente eleitos serem atingidos por esse mecanismo constitucional. Não é simples, ele desgasta os Poderes e deixa mágoas de difícil superação. Mais ainda: por trás da votação no Congresso e das alegações jurídicas, no impeachment existe sempre um movimento popular, que não se vê no momento. Melhor nem cogitar, prematuramente, de tal movimento.
Ao contrário, precisamos, como nação, de mais tranquilidade: temos pela frente dois enormes desafios. Um, generalizado e de consequências ainda imprevisíveis, mas todas negativas, que é a ameaça de uma pandemia, o coronavírus. O outro, sentido por todos e mais diretamente pelos mais pobres, o arrastado crescimento da economia. O desemprego passou a ser considerado como “em diminuição”, quando, na verdade, ainda há cerca de 12 milhões de desempregados, fora os desalentados, que nem empregos buscam mais, e sem contar a baixa qualidade de muitos dos “empregos” disponíveis. O tempo de desemprego tem aumentado. Significa dizer que parte dos que perderam o emprego terá dificuldade de reinserção no mercado de trabalho quando o investimento voltar e novas tecnologias forem incorporadas ao processo produtivo.
Um país que está inseguro – insegurança agravada pelo temor de uma eventual pandemia – e tem desemprego tão alto e resistente à queda precisa urgentemente de sensatez e de coordenação. Elas são necessárias para reduzir a insegurança e criar clima favorável ao investimento, sem o qual o crescimento da economia seguirá anêmico.
Nesta hora, faz falta a liderança: o presidente e seu círculo têm sido desastrados no falar, quando não no agir. Acirram, em vez de desanuviar, as ondas que nascem no meio político. Não raro são eles próprios a produzir turbulência a partir de um impulso de confronto incompatível com o bom funcionamento das instituições e potencialmente perturbador da ordem democrática.
Felizmente, os chefes dos outros Poderes, especialmente o da Câmara, percebem a situação e não lançam mais lenha na fogueira. De quem tem responsabilidade com o País se espera, no mínimo, que não compartilhe a loucura, não cale diante das tropelias, ainda que retóricas, e que não apenas tenha juízo para não acelerar ainda mais o descalabro, como também aja, com prudência, mas com clareza de propósito, para pôr freios na marcha da insensatez.
Sei que é difícil, dificílimo, pedir bom senso em momentos de polarização. Mas é o que o povo e o País precisam. Assisti muitas vezes no decurso dos acontecimentos, no Brasil e em outros países, a governos de competência restrita apelarem para o que lhes resta, em geral para os militares. Estes, por formação e, no momento atual, cada vez mais por convicção, sabem que a ordem não consensual e imposta por coação vale menos, para os objetivos nacionais, do que a ordem que deriva do livre consentimento das pessoas. Sabem que a ordem autocrática é pior do que a ordem democrática, em que o poder está submetido a limites e controles institucionais e à soberania popular. Em quaisquer circunstâncias, entretanto, para eles, a ordem é um valor a ser preservado.
Não é para “dar um golpe” que os militares aceitam participar do atual governo. Sentem sinceramente que cumprem uma missão, diante da dificuldade ou incapacidade do governo de recrutar maior número de bons quadros em outros setores da sociedade. O risco para a democracia e para as próprias Forças Armadas como instituição permanente do Estado é de que se borre a fronteira entre os quartéis e a política.
Como se desdobrará a situação atual? Depende de como se comportarem os líderes – não só políticos, mas da sociedade toda. É hora de convergir e assegurar o que mais necessitamos: coesão em torno de princípios e objetivos de proteção da democracia contra tentações populistas de índole autoritária. Sem sufocar as divergências naturais nas democracias, é urgente restabelecer o entendimento de que adversário político não é inimigo, de que política não é guerra, de que opositores eventuais do governo não são inimigos da pátria. É preciso ativar os anticorpos democráticos para neutralizar os impulsos de estigmatizar os políticos, como se difunde em parte das mídias sociais.
Precisamos de grandeza para superar nossos desafios. E de liderança: temos a que o povo escolheu. Mas o voto não é um cheque em branco e acima de qualquer mandatário está a Constituição.
Termino citando de memória palavras de Ulysses Guimarães: divergir da Constituição, alterá-la por meio de emenda, sim; desrespeitá-la jamais.

O Boletim

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