3 de maio de 2024
Cinema

Um Marido Fiel / Kærlighed for Voksne (por Sergio Vaz)

De: Barbara Topsøe-Rothenborg, Dinamarca, 2022

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em 11/2022.)

O marido, ao contrário do que diz o título brasileiro desta produção dinamarquesa lançada pela Netflix em agosto de 2022, não era fiel – e esse foi o motivo das tragédias que se abateram sobre ele. A infidelidade, o triângulo amoroso, isso por si só já é uma tragédia. Mas, na vida de Christian, sua mulher Leonora e sua amante Xenia, foi o motivo não de um, mas de dois assassinatos.

– “Quase todos os assassinatos acontecem por amor”, diz uma voz de homem em off, assim que o filme começa. “Aliás, metade dos assassinatos é cometida por cônjuges ou parceiros. E o motivo é quase sempre ciúme e paixão.”

Muitíssimo bem realizado em todos os quesitos, dos artesanais aos artísticos, o filme que em dinamarquês, em inglês, em francês, em espanhol teve títulos falando de “amor entre adultos”, e no Brasil virou Um Marido Fiel, começa de forma impressionante, estupenda, brilhante. Depois de créditos iniciais rápidos e um tanto diferentes do normal – em que vemos imagens feitas por uma câmara dentro da água do que parece um lago –, há tomadas de uma mulher aí de meia-idade se preparando para uma corrida perto de sua bela casa, num lugar cercado por verde, não dentro de uma área urbana. É de noite, e está chovendo.

Veremos depois que é Leonora (o papel de Sonja Richter, na foto abaixo).

Uma tomada de um carro parado, um homem na direção, o pára-brisas todo molhado. Veremos que é Christian, o marido de Leonora (o papel de Dar Salim, na foto abaixo). E, enquanto vemos aquela tomada, a voz em off prossegue:

– “É por isso que nunca acreditei na teoria de atropelamento culposo. Acho que ele, o Christian, ficou lá, no escuro e na chuva, esperando a esposa, Leonora.”

Tomadas de Leonora correndo numa estrada. Christian, que havia parado numa perpendicular, entra na estrada depois que a mulher passa correndo. O carro, na verdade um SUV, um utilitário, persegue a mulher – e a atropela. Um close-up rápido do rosto de Christian assim que o carro passou em cima do corpo da mulher: ele está apavorado, chocado.

Christian pára o carro.

Parecia um crime pensado, planejado – mas, assim que o crime foi cometido, o rosto que a câmara mostra não é de um assassino frio. De forma alguma. Muitíssimo antes ao contrário.

Nova tomada do rosto de Christian, quase em close-up. O rosto é de um homem apavorado, em choque – lágrimas estão saindo de seus olhos.

Fade out, a tela fica negra, surge o título em dinamarquês, letras brancas bem grandes sobre o fundo negro: Kærlighed for Voksne.

Hoje em dia tudo é fácil, e o tradutor do Google nos mostra que aquilo significa “amor para adultos”. Todas as informações estão sempre à nossa disposição, e o IMDb nos conta que o título do filme em inglês é Loving Adults, na França Amour entre Adultes, na Espanha Amor para Adultos. Mas os distribuidores brasileiros não estão sozinhos. Na Itália, o filme se chama Un Marito Fedele.

O policial conta para a filha o caso do triângulo amoroso

Fade in, e a tela deixa de ser negra para vermos, na tomada seguinte, o rosto em close-up do ator Mikael Birkkjær – o da voz que, em off, havia dito aquelas primeiras frases que ouvimos no filme. Ele está continuando a sua narrativa:

– “Somos alertados para todo tipo de coisa. Cigarros, álcool… Mas nunca para o maior perigo de todos. Quer dizer, o amor devia vir com um alerta por escrito: ‘O amor mata’.

Depois desse close-up e dessa fala de Mikael Birkkjær, há um close-up do rosto de uma bela moça. Em seguida há um plano de conjunto: aquele homem de meia idade está sentado diante da bela moça em uma mesa de um bar ao ar livre, um belo, simpático jardim. E a moça pergunta: – “Mas foi comprovado? Ele foi condenado por atropelá-la?”

Ele: – “Não, e isso foi culpa minha.”

Ela: – “Você solucionou vários casos, pai.”

Ele: – “Mas este ainda me assombra.”

Ela: – “Talvez tenha sido um acidente. Não tem como ter certeza, não é?”

Ele: – “Três noites antes do atropelamento, às 3h55, Christian recebeu uma mensagem de texto.”

Corta, e a câmara está no quarto do casal Christian e Leonora, às 3h55 da madrugada, quando chega ao celular dele uma mensagem de texto. O barulhinho acorda Leonora, e ela quer saber quem é que está querendo falar com o marido àquela hora.

Christian mente que é Peter, seu sócio na empresa de construção civil bem sucedida. Leonora não acredita, e exige ver o telefone. Há uma discussão pesada, e Christian joga o telefone com violência contra a parede em frente à cama do casal.

A mensagem de texto era da jovem e bela Xenia, a amante de Christian. Ele não teve tempo de ler a mensagem – mas era um ultimato. Um “ou ela ou eu”. Como tantas amantes e tantos amantes fazem, tantas vezes, mundo afora, seja nos países ricos, civilizados, como a Dinamarca, seja nos países pobres, periféricos, terceiro, quarto, quinto fim de mundo.

Toda a história de Christian, Leonora e Xenia que vemos na tela é o que o comissário de polícia Holger – interpretado por Mikael Birkkjær, na foto abaixo – conta para sua bela filha, em uma mesa de um bar num agradável jardim.

Dois homens com o pseudônimo de Anna Ekberg

Gostaria de explicar por que considerei os créditos iniciais um tanto diferentes do normal. Não foi pelo fato de que, enquanto rolam os nomes, vemos imagens subaquáticas. Não, não, de forma alguma. Na verdade, rapidamente esqueci daquelas imagens subaquáticas – e só no finalzinho dos rápidos 104 minutos de duração do filme a gente entende aquelas tomadas iniciais. O que é uma bela sacada – o final nos traz de volta ao começo, uma coisa circular, redonda. Bookends, a palavra que deu o título ao terceiro dos cinco únicos dos álbuns de estúdio de Simon & Garfunkel – os pesos que seguram os livros em uma extremidade e outra da estante. O final que volta ao começo, como na canção de Gonzaguinha. Mas aqui, perdão, dei uma viajadinha…

Hoje em dia, e a rigor nas últimas décadas, já não há mais um “normal” a respeito dos créditos iniciais. Boa parte dos filmes, talvez a maior parte, sequer tem créditos iniciais: vemos os logotipos das empresas produtoras, e aí começa o filme – para, ao final, vermos os créditos. Entre os filmes que têm créditos iniciais, boa parte tem, antes deles, um intróito, algumas sequências especialmente interessantes, fisgativas, fisguentas – para aí então, depois de alguns poucos minutos, vermos os créditos.

Dentro de toda essa diversidade, essa falta de um “normal”, no entanto, há ainda algumas regras. Em geral, aparecem primeiro os nomes dos atores principais, em seguida o nome do filme, e depois os nomes dos atores secundários. Ao final da relação dos atores, aí, sim, vêm os nomes dos chefes das equipes técnicas.

Pois é. Neste Kærlighed for Voksne aqui, aparecem apenas os nomes dos dois protagonistas, Dar Salim e Sonja Richter, que interpretam o marido Christian e a mulher Leonora.

Nem sequer o nome de Sus Noreen Jondahl Wilkins (na foto abaixo), que faz a bela jovem amante de Christian, Xenia, aparece. Nem sequer o nome de Mikael Birkkjær, que faz o comissário de polícia Holger, o personagem que conta para a filha – e para nós, espectadores – toda a história.

Logo depois dos nomes dos atores Dar Salim e Sonja Richter, vemos os do diretor de fotografia (Philippe Kress), dos compositores da trilha sonora (Kristian Eidnes Andersen e Rasmus Christensen), do desenhista de produção (Mette Rio), do montador (Lars Wissing), dos produtores executivos (um monte), da produtora (Marcella Linstad Dichmann), dos autores do roteiro (Anders Rønnow Klarlund, Jacob Weinreich, com base no livro de Anna Ekberg) e da diretora (Barbara Topsøe-Rothenborg).

Achei esse detalhinho – o fato de os créditos iniciais terem apenas o nome dos dois atores principais, e não incluírem nenhum dos demais atores – interessante. Diferente.

Uau, mas então temos que o filme é obra de uma diretora mulher, uma produtora mulher e uma autora do romance que deu origem ao filme mulher…

Bem, como dizia o cartunista Carlos Estévão na revista O Cruzeiro, as aparências enganam. Anna Ekberg não existe – é o pseudônimo atrás do qual se esconde não um único homem, mas dois. Exatamente os dois que assinam o roteiro, Anders Rønnow Klarlund e Jacob Weinreich.

Anders Rønnow Klarlund, nascido em Copenhagen em 1971, tem em sua filmografia nove filmes como autor do roteiro e nove como diretor. Jacob Weinreich também é dinamarquês, nascido em 1972, já dirigiu dois títulos e escreveu ou co-escreveu os roteiros de 11. É também autor de livros infantis e juvenis, radionovelas e podcasts

Juntos, assinando com o pseudônimo Anna Ekberg – seguramente uma homenagem à bastantosa atriz sueca Anita Ekberg -, já publicaram A Mulher Secreta e Um Marido Fiel. E têm também outro pseudônimo, A. J. Kazinski, com o qual publicaram dois outros livros, The Last Good Man e The Sleep and The Death.

Ali pelo meio do filme, a primeira grande reviravolta

A diretora Barbara Topsøe-Rothenborg é ainda mais jovem que os escritores e roteiristas Klarlund e Weinreich: nasceu em 1979, em Copenhagen. Aos 6 anos de idade, começou a carreira de atriz fazendo o papel título na série Nana, dirigida ao público infantil, que fez imenso sucesso e conquistou prêmios.

Com apenas 19 anos, começou a dirigir documentários e curtas-metragens para a TV dinamarquesa. Aos 21 mudou-se para Los Angeles, e trabalhou como assistente de direção em vários filmes (são 25 títulos como assistente de direção, no total). Como diretora, tem 16 títulos no currículo, entre eles diversas séries de TV.

Demonstra, neste filme aqui, ser uma diretora experiente, segura, firme – e uma excelente diretora de atores. Todo o elenco está muito bem. É impressionante.

Na primeira metade deste Um Marido Fiel, a diretora Barbara, os atores e o roteiro fazem com que o espectador veja com grande simpatia essa Leonora, uma mulher que dedicou a vida a cuidar do único filho do casal, Johan (o papel de Milo Campanale), que teve uma doença grave e ficou quase sem o movimento nas pernas. Para cuidar de Johan, ela abandonou o que parecia uma carreira promissora como violonista clássica. Christian, o marido, estudou engenharia e teve sorte na vida profissional: a empresa de construção civil que fundou com o sócio Peter (Morten Burian) deu muito certo. Foram ajudados também por uma fraude nas contas da empresa – mas o fato é que tinham uma vida folgada, uma belíssima casa e puderam custear um tratamento caríssimo de Johan nos Estados Unidos.

Agora, na época em que se passa a ação, Johan está com 18 anos, concluindo bem o segundo grau e quase inteiramente recuperado, já podendo caminhar sem a ajuda de muletas ou bengala.

Quando o filme está mais ou menos na metade, há uma primeira grande, gigantesca reviravolta.

E o espectador é obrigado a ver Leonora com outros olhos, sob uma perspectiva inteiramente nova.

Bem no final, diretora e roteiristas caem naquela perigosa tentação de dar uma exagerada para provocar suspense na platéia. E a revelação derradeira do motivo pelo qual o comissário de Polícia Holger contou toda a história do drama de Christian, Leonora e Xenia para a filha é uma ironia um tanto pesada demais, grosseira demais.

Mas são pecadinhos que não chegam a comprometer o filme, de forma alguma.

Achei este Um Marido Fiel um thriller muito bem elaborado, muito bem realizado.

Anotação em 11/2022

Um Marido Fiel/Kærlighed for Voksne

De Barbara Topsøe-Rothenborg, Dinamarca, 2022

Com Dar Salim (Christian, o marido),

Sonja Richter (Leonora, a mulher)

e Sus Noreen Jondahl Wilkins (Xenia, a amante), Mikael Birkkjær (Holger, o comissário de polícia), e Milo Campanale (Johan, o filho de Christian e Leonora), Katinka Lærke Petersen (Josefine, a filha do comissário Holger), Lars Ranthe (Kim), Iris Mealor Olsen (Martha, a namorada de Johan), Morten Burian (Peter, o sócio de Christian), Salomon Stampe Frederiksen (o funcionário do posto de gasolina), Susanne Storm (Kassandra, a amiga de Leonora), Natali Vallespir (Sonja, a ex-namorada de Mike), Fie Petersen  (Sonja jovem), Karoline Hamm (Leonora jovem), Oliver Due (Mike, namorado de Leonora, depois de Sonja), Benjamin Kitter (Ulrik), Sanne Saerens (mulher na cena do crime), Jesper Dupont (policial), Louise Davidsen (a professora de música da jovem Leonora)

Roteiro Anders Rønnow Klarlund, Jacob Weinreich      

Baseado no livro de Anna Ekberg, pseudônimo da dupla Anders Rønnow Klarlund & Jacob Weinreich

Fotografia Philippe Kress       

Música Kristian Eidnes Andersen, Rasmus Christensen 

Montagem Lars Wissing

Casting Karin Jagd

Desenho de produção Mette Rio       

Figurinos Rikke Simonsen

Produção Marcella Linstad Dichmann, Netflix Studios, SF Studios, TV 2 Film

Cor, 104 min (1h44).

***

Título em inglês: “Loving Adults”. Na França: “Amour entre Adultes”. Na Espanha: “Amor para Adultos”.

Fonte: 50 anos de Filmes (por Sergio Vaz)

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