24 de abril de 2024
Colunistas Lucia Sweet

Muita gente diz “foi picado pela mosca azul”

Mas não sabe que essa expressão vem de uma poesia escrita por Machado de Assis, que eu compartilho com meus amigos hoje. Uma das minhas poesias favoritas.

Com a destruição da Educação posta em prática por Paulo Freire, os professores passaram a doutrinar, em vez de ensinar. Afinal, um povo ignorante é mais fácil de ser enganado e dominado.

Tem gente das novas gerações que também não sabe mais nem quem foi Machado de Assis. Descendente de escravos libertos, ele foi um dos fundadores da outrora respeitada Academia Brasileira de Letras, de ilustre e saudosa memória e que foi chamada de Casa de Machado de Assis.

É essa gente sem cultura, ignorante ou de má fé, que acha normal nomearem escritores medíocres, jornalistas medíocres, cantores e atrizes desde que sejam de esquerda — ça va sans dire — para destruírem mais uma instituição cultural que já foi respeitada por sua relevância, em flagrante desvio de finalidade. (Acrescento que ninguém mais parece lembrar do incêndio que destruiu o Museu Nacional, sob a responsabilidade do reitor da UFRJ, que é do PSOL e segundo eu li, está foragido por desvio de verbas. Hoje os psolistas estão migrando para o PSB. Não vote nesses partidos).

ABL foi uma instituição fundada por gramáticos, filólogos, romancistas, cronistas, teatrólogos, escritores de renome, poetas, lexicógrafos (que escreviam dicionários, como Laudelino Freire, Aurélio Buarque de Holanda, Antonio Houaiss, entre outros) e que falavam grego, latim e francês, pelo menos. Uma tristeza e um empobrecimento cultural.

A mosca azul – Machado de Assis

Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.
E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua, – melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.
Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
“Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que to ensinou?”
Então ela, voando, e revoando, disse:”Eu sou a vida, eu sou a flor
“Das graças, o padrão da eterna meninice,
“E mais a glória, e mais o amor.”
E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo,
E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.
Entre as asas do inseto, a voltear no espaço,
Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço
E viu um rosto, que era o seu.
Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu,
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vichnu.
Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo, as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.
Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
Voluptuosamente nus.
Vinha a glória depois; – quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e o parabéns unidos
Das coroas ocidentais.
Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpo os corações.
Então ele, estendendo a mão calosa e tosca,
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.
Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil,
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
Hoje, quando ele aí vai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.


(Ocidentais, in Poesias completas, 1901.)

Lucia Sweet

Jornalista, fotógrafa e tradutora.

Jornalista, fotógrafa e tradutora.

1 Comentário

  • RACHEL ALKABES 16 de abril de 2022

    É o império da mediocridade! Império da burrice, demonstrado no filme Idiocracia.
    Lindo o poema.

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