20 de abril de 2024
Colunistas Ligia Cruz

A dor do outro

Final de ano tem uma energia estranha que alegra e entristece ao mesmo tempo. Muita gente sente isso. É um ‘não sei quê’ que cutuca fundo na alma e deixa uma marca indecifrável.
Momentos idos, pessoas rememoradas e sentimentos não pareados, incompreendidos. Aquelas coisas que gritam por dentro e ninguém ouve.
É preciso lidar com isso e deixar ir, porque passa. Passa e são superados por  sentimentos de esperança, como se fosse uma centelha que  ilumina o espírito. Mas nem todo mundo consegue sair de uma situação assim e se fecha no fundo de si mesmo.
Foi o caso de uma jovem que decidiu que não queria mais seguir adiante e lidar com essas coisas, esses sentimentos estranhos de fim.
Uma garota de 17 anos, muito bonita, de pele amorenada e cabelos negros longos, moradora de uma cidade interiorana do Centro-Oeste do país.
Ela desistiu depois de uma noite na balada com amigas. Coisa comum entre adolescentes nos  dias de hoje. Chegou em casa já na madrugada e pela manhã, bem cedo, o pai a encontrou sem vida, enforcada em uma árvore no quintal. Uma cena desesperadora que jamais será esquecida pela família, amigos e comunidade.

Ninguém suspeitou de nada. Algo que, supostamente, vinha brotando timidamente no seu inconsciente e ganhou corpo devagarinho até o desfecho fatal.

Tudo indica que houve planejamento, não necessariamente para ser concretizado naquele dia, mas dentro de um determinado contexto.
É  difícil aceitar e compreender porque alguém foi se divertir e voltou para casa como sempre e decidiu acabar com tudo o que tinha pela frente.
O gatilho? Nunca vamos saber.
Não houve citação de uso de drogas ou qualquer substância inebriante. Se aconteceu, é assunto velado, não comentado por familiares e nem mesmo no jornal local. Talvez, a família com o tempo possa compreender como e porquê  uma tragédia assim aconteceu.

Em nossa sociedade  há um tabu sobre a morte por livre escolha. Mesmo em caso de eutanásia  para doentes terminais há reprovação  pela maioria das sociedades.

A comunicação da jovem nas redes sociais não tinha nada de anormal, a não ser um certo apelo sensual, uma necessidade acentuada  de chamar atenção e receber elogios, comum de muitos jovens nessa faixa etária.

A linguagem usada entre ela e os seus afins era um tanto exagerada na forma de demonstrar liberdade de expressão, como se estivessem afrontando o mundo. Nada que também não seja comum.
Algumas publicações tinham conteúdos bastante duros para alguém tão jovem, como em um enredo de realismo literário. Ela chegou a publicar um texto de conteúdo suicida. Ninguém percebeu ou teve a iniciativa de questionar o porquê. Talvez, fosse um traço de sua personalidade abordar temas como esse, como se fosse um enfrentamento à crueza da vida.
Mas é difícil colocar-se no lugar do pai, da mãe e até de parentes e pessoas ligadas a ela. Não se cria uma filha ou filho para vê-lo escapar assim, sem caminho de volta. A família vai precisar curar-se e superar, da melhor maneira possível uma partida tão precoce.
Esse ‘grito de dentro’  é muito mais comum do que se pensa e pode acabar num ato suicida. Não só de jovens mas de pessoas de diferentes idades, que se veem desesperançadas.

É preciso ler os sinais, observar e questionar o que os adolescentes e jovens estão fazendo nas redes sociais e de que forma estão se expressando.

Sem nenhum juízo sobre o pai que encontrou sua menina na ponta de uma corda. Em uma postagem bem recente a jovem replicou um texto de conteúdo suicida de um outro jovem, como se fosse normal.
Alguns curtiram, mas ninguém ponderou. Somente após o ocorrido uma amiga próxima reproduziu e escreveu: “ela avisou!”, tomando para si o fracasso de não ter percebido nada, a ponto de ter evitado. Sobrou para todo mundo.

Porque falar sobre isso nas festas natalinas? Justamente porque muitos problemas vêm à tona nessa época.  Como foi o caso da garota em questão. Muitas tentativas de suicídio ocorrem nesse período.

Nas redes sociais há vários  grupos de pessoas que já atentaram contra a própria vida, em geral jovens que comentam suas tentativas, as medicações que tomam e o fato de serem fardos para suas famílias.

Desagregação, conflitos, rejeição, traumas familiares, abusos, portadores de psicopatias e doenças mentais várias são o pano de fundo dessas histórias. É deprimente a quantidade de pedidos de socorro.

Vamos sair da casca, observar mais e interagir porque esses jovens precisam de ajuda.

Não podemos curar feridas, mas podemos suavizar esse grito que vem de dentro.
E, talvez, alertar as famílias sobre potenciais tragédias que podem ocorrer.
A dor do outro é nossa também.
Ligia Maria Cruz

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

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