Ela acordou mais cedo que o normal, antes até do amanhecer, e olhou para a mochila esperando no canto do quarto do hotel de beira de estrada.
Espreguiçou do jeito engraçado que a fazia parecer uma gata grande e desajeitada, e sentou, os pés descalços no tapete, puído como os seus jeans.
“Há tempo para tudo debaixo do céu, seja azul, seja prata”, pensou.
O tempo do revir.
Calçou as botas de couro marrom – tinha usado no show do Paul! – e sorriu lembrando que a chamavam de “sra. McCartney” quando adolescente.
Tentou aprender Yesterday no violão e tudo!
O carro esperava paciente lá fora.
“O tempo é uma paisagem marciana”, ela tinha ouvido em algum lugar. Não entendia mas gostava da frase. Castañeda ou Garcia Marquéz? Não sabia. Tinha pintado uma camiseta com os dizeres, lembrou e sorriu de novo.
Hora de revir.
Pegou a mochila e pôs em um ombro. Deu uma última olhada para ver se não havia esquecido nada. Fechou a porta. Desceu as escadas correndo, de dois em dois degraus. Agora que tinha decidido voltar, tinha pressa.
Pressa de revir.
Tanto tempo longe de casa, tanto. Fora embora numa manhã chuvosa, o violão que ainda não tinha desistido de aprender na mão esquerda, alguns trocados no bolso, uma passagem de ônibus, uma mochila – outra, aquela com o macaquinho pendurado.
Era uma menina quando tinha deixado a casa dos pais, o rosto liso como a alma.
A mulher que retornava agora tinha ambos marcados, pequenas linhas quase invisíveis em volta dos olhos e da boca, outros sulcos mais profundos no coração, a mulher que voltava, a do revir.
Enquanto dirigia, pensava em como seria reencontrar a casa em que nasceu, onde fugia pelada do banho, onde cresceram e caíram os primeiros dentes, o muro cheio de limo onde beijou o primeiro namorado, a rua onde caminhou descalça, pisando em poças de água da chuva, caçando arco-íris, caçando doces no dia 27 de Setembro, a escola em que ensaiou os passos dos 15 anos, a valsa, o príncipe, coisa demodeé hoje em dia, tanto quanto a palavra demodeé.
Pensou nos pais e a lembrança adoçou seu olhar, seu sorriso, sua alma. Tinha ido embora num galope de jovem, sem olhar para trás, queimando as pontes todas, meses sem telefonar, sem mandar um sinal, como tinha sido burra, burra.
Momento de revir.
Chegou ao aeroporto e, pela primeira vez, imaginou como seria recebida.
Se seria recebida.
Esqueceu de tirar o cinto – como sempre, era tão pateta! – o alarme disparou, que droga! Sacudiu a cabeça, pegou uma coca-cola, embarcou, abriu o livro e relaxou.
Tinha a sensação de que, quando chegasse, sua cama estaria arrumada com o cobertor que ela usava desde os 15 anos, com o mesmo urso de pelúcia rasgada em cima, e a mesma bandeja com chocolate e biscoito de Maizena com manteiga.
Porque, ao fim e ao cabo, todos os pais são feitos, em partes iguais, da mesma substância que compõe o perdão e o amor, o achego e o acalanto, e cabe eles na vida a missão de serem portos para o regresso dos filhos.
Hora de revir.
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