Ainda adolescente comprei meu primeiro manual de jornalismo. Seu autor, Fraser Bond, trazia algumas boas lições práticas. Mas de uma de suas lições, jamais me convenceu. Bond dizia que a morte de um cão na sua rua é mais notícia do que um terremoto na China.
Nada estremece mais seu argumento do que a aparição do coronavírus em Wuhan, a sétima cidade da China, e casos já registrados em vários países do mundo. Ele usou o exemplo do terremoto porque certamente ainda não havia tanta integração no mundo quanto agora, o que transforma a segurança biológica numa agenda internacional inescapável.
O Brasil, como todos os outros países, está em alerta. Isso é essencial num momento em que não é novo. O surgimento de vírus devastadores tem sido uma constante, possivelmente pela degradação do meio ambiente.
É correto olhar para a China neste momento. No entanto, para não desapontar Fraser Bond, não podemos esquecer o que acontece perto do nós.
Foi com esse espírito que levantei semana passada algumas dúvidas sobre o que acontece em Roraima, mais precisamente no Presídio Monte Cristo. Segundo as notícias, ali quase 100% dos prisioneiros sofriam de sarna. Mas recentemente a situação se agravou, e os prisioneiros têm uma doença que dá a eles a sensação de estarem sendo comidos por dentro.
Era necessário que o governo criasse um núcleo médico capaz de diagnosticar essa doença e tratá-la imediatamente.
Argumentar que são bandidos, escolheram esse caminho, é muito pobre não só do ponto de vista humano, como irresponsável diante da segurança biológica do país.
Os presídios, mesmo os de segurança, não são ilhas totalmente isoladas. Neles, trabalham funcionários em turnos diferentes. Isto significa que se relacionam com as suas famílias. Além disso, há visitas, advogados, inúmeras pessoas que ficam expostas a um perigo.
Como estou em outra parte do Brasil no momento, tenho mais perguntas do que respostas sobre essa doença no presídio de Roraima. Não vi notícias sobre o exame desses presos, o possível diagnóstico da doença. É um agravamento da sarna? Outra doença completamente diferente? O que dá a eles a sensação de serem comidos? Seria uma bactéria? Tem nome? É preciso examinar as pessoas que trabalham no presídio?
Nossas demandas sobre uma política de segurança biológica ainda são centradas na transparência. Chernobyl foi um caso típico de negação das regras do jogo. A China também às vezes é acusada de não revelar as verdadeiras dimensões de algumas doenças.
Lembro-me de que na aparição dos primeiros casos de Aids no Brasil, falava-se que era localizado e atacava apenas a minoria. Felizmente, superamos essas limitações e chegamos a uma política nacional respeitada até fora do país.
Mas o front é muito diversificado. Durante alguns anos, enfrentamos a dengue. Depois apareceram a chikungunya e a zika, esta bastante pesquisada depois de uma passagem assustadora no Nordeste.
Menos falada, a chikungunya também é uma doença séria. Entrevistei alguns atingidos por ela, em Sergipe. Fiquei impressionado com as queixas sobre dores, algumas estendendo-se por um ano.
Apesar de suspeitas, não se pode afirmar ainda que o coronavírus surgiu na crista de algum desequilíbrio ambiental. Mas é evidente que uma política ambiental destrutiva quase sempre vem ao lado de um desinteresse pela segurança biológica.
No Brasil, Paulo Guedes acha que a degradação ambiental é produzida pela pobreza. Mas, na verdade, é a pobre compreensão do problema pelo governo que pode agravar a crise ambiental. Da mesma forma, quando se fala em princípio de precaução, aqui a ideia é de um velho que sai de guarda-chuva num dia ensolarado.
Mas não é isso, o mundo mudou, ficou muito mais perigoso, interligado. O velho professor de jornalismo não sabia disso na sua época. Ignorar essa realidade hoje só torna o mundo mais perigoso ainda.
No entanto, o momento já é também de esperar que, além da transparência, os governantes sejam julgados por sua capacidade de antecipação.
Não se pode comparar a doença no presídio com um coronavírus na China. Mas o alarme na segurança biológica não deve se prender a algum vírus devastador e misterioso.
Artigo publicado no jornal O Globo em 26/01/2020
Fonte: Blog do Gabeira
Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.